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minhas notas

18.01.22

Sou apaixonado por leitura, começando pelos livros, mas também por jornais e revistas. Por razões de vária ordem, tenho pena de não ter mais tempo para ler.  Recomendo vivamente a leitura dos nossos grandes escritores, ou de livros de formação e conhecimento. Hoje está mais do que provado que a leitura também é uma terapia cognitiva, psíquica e emocional. Acho que o mundo de hoje devia prestar mais atenção aos sábios e aos escritores, em vez de prestar tanta atenção à mediocridade e à lixeira que por aí anda na televisão e nas redes sociais.  Não tenho a mínima dúvida de que a salvação do mundo também passa por eles.  

A escritora Lídia Jorge deu uma boa entrevista a um programa da TVI24, Entre Tantos, da qual guardei três bons apontamentos, análises com as quais concordo. Para a escritora algarvia, a democracia foi boa, foi uma grande conquista, mas ainda é muito imperfeita, tem muitas imperfeições. Ainda falta a muitos portugueses uma índole democrática e um comportamento mais escorreito com a democracia. Diz a escritora: «Não ultrapassámos o medo ancestral que trazemos de sermos pobres. Somos calados. Somos aquilo que o Torga dizia: uma comunidade pacífica de revoltados. Somos revoltados, mas somos pacíficos. Nunca metemos medo a quem nos está defraudando, não metemos medo a quem nos usurpa os nossos bens. É algo que os portugueses ainda não ultrapassaram. A nossa reação cívica é muito lenta e quando acontece que não é lenta, é irónica, já desistimos, há uma ironia e uma melancolia na nossa crítica que não é uma crítica construtiva, é uma crítica de maledicência, que fica pela ironia, pelo humor, passa, mas não tem consequência.» Não será de todos, mas é uma bela radiografia de muitos portugueses, da nossa brandura gozona e maldizente, mas inconsequente.

O divórcio da mãe e tudo o que se seguiu marcou profundamente a escritora. Num tempo de catolicismo férreo e de grande conservadorismo de costumes, a sua mãe foi muito mal vista. Troçavam dela. Havia dois mundos: o dos homens, gestão dos bens, e o das mulheres, que ficavam à parte, que eram sobretudo cuidadoras da família e ajudantes. Não tinham protagonismo. Para a escritora, muita da atual violência doméstica ainda tem a marca desse tempo machista, em que o homem é que tinha o poder, o homem era rei e senhor, tinha o segredo dos negócios e mandava em tudo. Mas os tempos mudaram. Hoje as mulheres são livres, já podem dizer ao homem que não o amam, mas os homens reagem mal, ainda olham para a mulher como antigamente, a mulher é alguém de quem o homem pode dispor como muito bem entender, é apenas a cuidadora da casa, ainda não é o outro, semelhante em dignidade, merecedor de todo o respeito.

A parte da entrevista que me deixou mais pensativo foi quando falou da sua apreensão quanto à literatura. Reparemos neste progressismo: já se fala de um mundo pós-literário. Assusta. Como afirma a escritora, «a literatura é a arte mais densa de todas, a mais exigente de todas, exige de nós uma transfiguração que é feita a partir dos mínimos sinais possíveis, que são as letras numa página branca. Está a acontecer uma perda de leitores e de literatura, que encaminha as sociedades para um estado de selvajaria, porque é na literatura, na leitura, que se aprende a criar valores, porque a leitura vem ao encontro da necessidade que temos de exercitar um cérebro lento, um cérebro onde é possível evitarmos o correr do tempo, minuto a minuto, e entrarmos num tempo subjetivo, onde é possível fazer comparações, tirar ilações, e isso é lento, muito lento, a arte que faz isso melhor é a literatura. Atualmente, há uma espécie de corrida em contramão, estamos todos a correr vertiginosamente para alguma coisa, onde não há espaço para a literatura. Os leitores não podem ser apenas uma pequena seita.» Infelizmente, o mundo está a recuar neste domínio. Temos de insistir no bom hábito de ler e refletir a vida.

Para a escritora, «o homem moderno está a regressar ao estado selvagem, está de tal forma envolvido por estímulos diferentes dos quais se tem de proteger e tem de estar permanentemente a reagir para sobreviver, de modo que não tem espaço para a densidade psicológica, para estar consigo próprio, para a introspeção. Não estamos a saber lidar com isso. Hoje o silêncio é um luxo. Para sobreviver hoje, temos de ir atrás da enxurrada de sons e de gestos, uns atrás dos outros, gestos tecnológicos, que nos dizem que são gestos modernos. Mas a grande complicação é esta: estamos envolvidos no mais moderno que há, estamos a avançar, mas esta modernidade é só aparente, é só instrumental, porque a parte psicológica está a regredir. O homem moderno funciona como um selvagem, sobrevivendo permanentemente a estímulos adversos».

Há um retrocesso humano. Isso nota-se nas relações humanas. Estamos a regressar a “instintos” básicos. O outro não é o meu semelhante que devo amar e respeitar, o outro com quem eu compartilho a vida, mas o outro contra quem eu luto. Bem escrevia aqui há uns anos o filósofo francês, Edgar Morin, que um dos dramas do nosso tempo seria o desequilíbrio entre o nosso desenvolvimento industrial, científico e tecnológico, que seria rápido e avassalador, e o desenvolvimento e crescimento humano, social e espiritual da sociedade, que ficaria muito aquém daquele, podendo até regredir para níveis primários e arcaicos, incivilizados e desumanos. O império do individualismo, os níveis de violência e agressividade a que assistimos, a bandalheira de valores e princípios, a coisificação do outro, a cultura de descarte, a indiferença reinante, os índices de abandono e solidão, entre outros, não deixam de nos comprovar esta inquietante constatação. Com diz Lídia Jorge, estamos todos a precisar de fazer uma grande pausa (um tempo de profunda reflexão, para nos encontrarmos com a nossa humanidade).

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