06.03.11
Nos últimos dias, fomos confrontados com casos gritantes de abandono e isolamento de idosos. Nada disto nos espanta. Quem está minimamente atento ao que se passa na sociedade actual, há muito que se apercebeu que estes acasos haveriam de aparecer mais dia, menos dia. A perda de valores fundamentais, sobretudo humanos, que é notória no actual ambiente social e na estrutura da personalidade das pessoas, arrastar-nos-ia, inevitavelmente, para situações de clara desumanidade e até de crueldade humana. Na cultura oriental e africana, o mais velho é a pessoa mais importante, porque tem memória e experiência, sendo, por isso, considerado um tesouro de que não se pode prescindir, mas que se deve cuidar com todo o esmero. No mundo ocidental, o mais velho é aquele que já deu o que tinha a dar, que anda a estorvar os outros que querem viver e trabalhar, não lhe restando outra coisa que refastelar-se a um canto e esperar angustiada e penosamente o dia da partida para o outro mundo. Que tristeza. No mundo oriental e africano, as gerações convivem umas com as outras, combinando-se energia e sonho dos mais novos com o sal e a serenidade dos mais velhos. No mundo ocidental, separam-se as gerações, pouco ou nada importando o calo e a sapiência vital dos mais velhos, que «já estão fora do mundo». No mundo oriental e africano, o mais velho é a fonte da sabedoria que tem histórias bonitas para contar sobre o sentido da vida e a conduta que se deve ter. No mundo ocidental, o mais velho é o tonto que ainda vive no seu tempo, não se dando conta de que a sua era já lá vai. E muito mais se poderia descrever, num exercício humilhante de aproximação à nossa decadência ocidental. Durante a minha vida estudantil na cidade do Porto, quantas vezes não vi o bafo pesado de muitos velhos nos vidros das janelas, que se punham a contemplar um mundo que pouco olhava para eles, a pedirem mais compaixão e atenção. Por vezes até se escondiam, dando a impressão de se sentirem envergonhados por serem velhos. Uma sociedade que não trata bem os seus velhos está doente.
O caso que suscitou mais discussão foi o caso de Augusta Martinho, residente na Rinchoa, Rio de Mouro, Sintra. Esteve nove anos morta em sua casa. A discussão à volta do caso, maioritariamente superficial e simplória, teve logo a preocupação de arranjar culpados. A prática imediata é logo arranjar culpados e dar sermões sobre esta escabrosa e indecorosa sociedade em que vivemos. É claro que há culpados. Os vizinhos, o Estado, o tribunal não ficam nada bem na fotografia, em certos momentos têm mesmo comportamentos inqualificáveis. Mas, reflectindo mais um pouco, não nos é difícil perceber que somos todos culpados, porque todos pactuamos com uma visão distorcida da vida (dar um valor excessivo a quem é activo e produz) e de forma activa ou omissa vamos deixando imperar o ostracismo dos mais velhos. Estes casos são sintomáticos da sociedade esquisita e estouvada em que vivemos e que todos construímos.
Deste caso ninguém sai ileso. Em primeiro lugar, a pessoa em si. De certeza que a senhora não tinha uma rede saudável de relações humanas. Muito do isolamento que actualmente existe é originado pela própria pessoa que o vive, que paulatinamente se vai afastando do mundo e se fecha sobre si própria e sobre o seu comodismo. Se queremos que os outros venham ao nosso encontro, também temos de saber ir ao encontro dos outros. A vida é ir colhendo o que vamos semeando. Temos de cultivar um estilo de vida saudável, assente em relações humanas e sociais sólidas, de diálogo e abertura aos outros, um estilo de vida que cimente a cordialidade e a proximidade. Neste caso podemos ver os frutos que colhe uma sociedade egoísta e individualista.
Em segundo lugar, a família. Um ou outro familiar afastado ainda tomou algumas diligências para se inteirar da sua situação, e pouco mais. Se tivesse muito dinheiro e uma casa que interessa-se a muitos, talvez a preocupação do resto da família tivesse sido outra (como se vai vendo!). A família, a quem estamos mais intimamente unidos e onde mais se dá e se recebe, tem o dever e a obrigação moral de zelar pelo bem de todos os seus membros, mais ou menos afastados. A família é a âncora necessária que dá confiança e segurança na vida e nunca pode deixar de ser essa âncora. Hoje em dia, diz-se que o dinheiro e o tempo da família não chega para tudo. Não é verdade. É tudo uma questão de prioridades. O problema é que as famílias estão obcecadas pelos bens materiais e pelo bem-estar, ficando as pessoas para segundo plano. Neste caso também podemos constatar os frutos de uma sociedade que não defende a instituição familiar e que se empenha em adulterá-la com experimentalismos jurídicos.
Em terceiro lugar, a boa vizinhança. Já era sabido que, nas cidades, os habitantes dos prédios mal se conhecem, salvo algumas excepções, mas nunca se imaginou que a indiferença chega-se a este ponto. Muitos dos prédios urbanos são autênticas escolas de desumanidade. Não existe a consciência de que os vizinhos têm o dever de se conhecerem e de cuidarem uns dos outros, num clima de sã convivência. Não existimos para sermos uma ilha. Para muitos, só há vida dentro das quatro paredes do seu apartamento. Do outro lado começa a selva. Acolhe-se mais depressa um cão que ande perdido na rua, com que o pequerrucho engraçou, do que o vizinho do lado. E tudo na maior insuspeita normalidade. Durante anos e anos, na maior tranquilidade. Que mundo estranho! Que se lixe uma sociedade em que não há humanidade entre as pessoas.
Em quarto lugar, a sociedade, da qual todos fazemos parte. Não podemos deixar que as pessoas valham por aquilo que produzem e pelo dinheiro que geram, como infelizmente a sociedade actual as vê. As pessoas são pessoas e não máquinas de produção e pelo facto de deixarem de produzir não deixam de ser pessoas, que devem ser amadas. Chega de uma sociedade que só pensa em trabalho e dinheiro, deixando que muitas pessoas, sobretudo mais velhas, passem os últimos dias da sua vida na extrema solidão e abandono. Porque não pedir aos laboratórios farmacêuticos que se empenhem em descobrir uma vacina para a nossa obsessão por dinheiro e para o egoísmo e o individualismo?
Fenómeno interessante, actualmente, é que passamos dias e dias a proferir lamentos e julgamentos sobre as feridas da nossa sociedade, mas não mudamos nada. O que é que ficou da comiseração destes últimos dias? O que é que mudámos em relação aos mais velhos? Nada ou quase nada. De caso em caso, de tema em tema, tudo está ao serviço do entretenimento. Fala-se de tudo, comenta-se tudo, chora-se, grita-se, mais não querendo que ir passando o tempo. De resto, tudo na mesma. Assim vai andando a nossa superficialidade.
Em Ano Europeu do Voluntariado, deixo uma sugestão aos desempregados: o facto de estardes desempregados não vos impede de dar qualquer coisa aos outros. Porque não dar umas horas por dia a muitos idosos que estão mais sós?