09.10.10
No próximo dia 5 de Outubro, o regime republicano português celebrará os seus cem anos. Foi implantado no dia 5 de Outubro de 1910, após vários séculos de monarquia. Um centenário é sempre motivo de celebração, mas também de balanço e memória. Como todos os regimes, a República Portuguesa tem luzes e sombras. Vejamos a história mais de perto, nomeadamente as relações entre República e Igreja Católica. Hoje, está instaurada a Concordata de 2004, mas no início não foi bem assim. Mal tomou conta do país, a Primeira República (1910-1926), de forte cariz maçónico e jacobino, declarou guerra à Igreja Católica. Um pacote de medidas anticlericais, na senda do Marquês de Pombal e de Joaquim António de Aguiar (o mata frades), entrou em vigor, com o intuito de se promover a laicização do Estado e da sociedade portuguesa: proibição do ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e normais; extinção da Faculdade de Teologia e da cadeira de Direito Canónico no curso de Direito; eliminação dos feriados religiosos do calendário civil; a introdução do divórcio e da exclusiva validade jurídica do casamento civil; instituição do registo civil obrigatório e remunerado. A culminar todo o processo legislativo anticlerical, a Primeira República aprova a chamada «Lei intocável», a Lei de Separação da Igreja e do Estado, a 20 de Abril de 1911, que permitia ao Estado português apropriar-se dos bens móveis e imóveis da Igreja secular, proibição do culto público, excepto se autorizado pelo Estado, introdução de comissões culturais nas paróquias e inclusive a concessão de pensões às viúvas e aos filhos dos padres católicos (repare-se até onde ia a provocação). Enfim, pretendia-se limitar ao máximo a actividade da Igreja Católica e a sua margem de influência nas estruturas sociais. Como não poderia deixar de ser, a Igreja Católica reagiu com veemência e em conjunto, considerando as medidas altamente atentatórias às suas liberdades e direitos. O regime republicano, na sua voracidade anticlerical, decreta a expulsão dos bispos e desterro por dois anos. A Santa Sé corta relações diplomáticas com Portugal. Muitos historiadores, inclusive alguns católicos, defendem que esta fase também foi positiva e que, de facto, a sociedade portuguesa de então precisava de reformas, nomeadamente uma justa separação entre Estado e Igreja. É verdade. Mas o que se questiona é a forma desastrosa e agressiva como tudo foi feito. Não era necessária a violência física, legislativa e verbal. Com a chegada da 1ª Guerra Mundial, a tensão entre a Primeira República e Igreja Católica desanuviou um pouco, por força de se querer um forte consenso em relação à participação de Portugal na guerra e assim continuou até à queda da Primeira República, no ano de 1926. Por esta altura, são anuladas algumas medidas despropositadas e acintosas para a Igreja Católica e os progressos nas relações já eram de tal forma reconhecidos por ambas as partes, que foi decretada a reposição da paz entre o Estado português e a Igreja Católica, no dia 6 de Julho de 1928. Contudo, no figurino legislativo do Estado português ainda permaneciam alguns resquícios de anticlericalismo e de anticatolicismo e persistiam hesitações e indefinições nas relações entre o Estado português e a Santa Sé. Ciente da necessidade de um código estável que regulasse as relações entre Portugal e a Santa Sé, António de Oliveira Salazar, chefe do Estado Novo, encetou negociações com o Vaticano, que vieram a culminar na Concordata, assinada por ambas as partes a 7 de Maio de 1940. A Igreja Católica passou a ter um conjunto de direitos e benefícios em ordem a desenvolver a sua acção, comprometendo-se ambas as partes a colaborarem, sem interferirem uma na outra. Chegava assim ao fim um período de animosidade e de afronta entre o Estado português e a Santa Sé, desde a instauração da República. Em 1975, a Concordata sofreu uma pequena revisão, com a introdução do direito ao divórcio civil para todos aqueles que tenham celebrado o casamento católico. Entretanto, no último terço do século XX, deram-se acontecimentos importantes: consolidação da democracia na sociedade portuguesa, lançamento de novos desafios pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), integração de Portugal na União Europeia e a promulgação da nova lei da liberdade religiosa (igualdade de direitos entre todas as confissões religiosas e da liberdade religiosa para todos os cidadãos), em Abril de 2001. Facilmente se percebeu que a Concordata de 1940 estava desactualizada e precisava de ser seriamente revista. Por isso, em 18 de Maio de 2004, Durão Barroso, então Primeiro-Ministro, e o Cardeal Angelo Sodano, representante do Vaticano, assinaram a nova Concordata entre o Estado português e o Vaticano. O balanço é positivo. Durante a maior parte do centenário, prevaleceu a sã convivência e o respeito mútuo. É inquestionável que Portugal deve muito à Igreja Católica, intimamente ligada à sua história e a Igreja Católica também deve muito a Portugal. Não seriamos o Portugal que somos sem a tradição cristã. Estarão o anticlericalismo e o anticatolicismo definitivamente enterrados? Nos discursos oficiais parece que sim, mas nas decisões, de vez em quando, ainda se vão notando alguns tiques, o que não tem a mínima justificação. O Estado português não ganha nada em menosprezar uma instituição milenar como a Igreja Católica. Cada um à sua maneira, persegue o mesmo objectivo: o bem dos cidadãos, indo ao encontro das suas múltiplas necessidades. Por isso, devem colaborar, preservando cada um a sua independência, sem se combaterem e agredirem gratuitamente. Na celebração do centenário e tendo bem presente o seu passado, seria oportuno que a República desse uma palavra de confiança à Igreja Católica, afastando-se de vez as desconfianças e os preconceitos, de modo que se consolide a pacificação, assente numa franca cordialidade e serviçal entreajuda, a bem de Portugal.