01.07.10
No dia 18 de Junho, faleceu José Saramago, o único Nobel da literatura de língua portuguesa. Sem dúvida, a cultura e a língua portuguesas ficaram mais pobres. Deixou-nos o escritor que mais projectou a língua portuguesa nos últimos anos e que ofereceu boas horas de leitura a muitos leitores por todos os cantos do mundo, com livros, alguns deles, excelentes. Goste-se ou não do seu estilo literário e do seu imaginário, José Saramago era um exímio criador de imagens e de alegorias, com que procurava reflectir a complexidade e a densidade da realidade e da vida. Sendo um escritor tardio, ainda chegou a tempo de ser um inovador dentro da língua portuguesa, desafiando tradicionalismos literários e uma velha concepção literária acomodada, mostrando-nos que o pensamento e as palavras gostam de um mundo libertino, porque a realidade e as emoções são sempre novas.
Desde há uns anos para cá que vinha a prestar alguma atenção à sua produção literária e às suas intervenções. Destaco dois ou três aspectos da sua personalidade e do seu carácter, legado que também nos deixa, que sempre gostei de ver nele. Em primeiro lugar, José Saramago era um homem que pensava pela sua própria cabeça. Sempre fiel a si mesmo, não se deixava arrastar facilmente por aquilo que não compreendia e que não aceitava, mesmo dentro do seu partido, o Partido Comunista Português. Não deixava que nada escapasse ao crivo da coerência e da razoabilidade. Detentor de um apurado espírito crítico e de uma insatisfação saudável e, sobretudo, amante do pensamento e da filosofia, continuamente questionava a realidade e as concepções que circundavam à sua volta. É de louvar esta qualidade. Vivemos tempos em que as pessoas estão a perder a consciência crítica, apenas apanágio de uma minoria, aceitando-se quase tudo na ordem do pensamento e dos comportamentos de forma acrítica, ditado por uma maioria e veiculado pelos meios de comunicação social. Somos verdadeiramente livres quando sabemos questionar a realidade à nossa volta e apreendemos por nós mesmos a caminhar com autonomia, com ideias próprias, sem medo do confronto e da convivência com ideias diferentes e contrárias.
Em segundo lugar e no seguimento do ponto anterior, José Saramago era um homem de convicções, identificando-se, em quase tudo, com a visão antropológica e histórica e com a organização social da ideologia comunista. Defendeu-a até ao fim da sua vida. Pena que não tivesse reconhecido de forma clara os seus fracassos e incongruências e, sobretudo, as suas barbaridades. Seja como for, manteve-se fiel àquilo em que acreditava. Ser homem é ter convicções e lutar por elas ao longo da vida. Hoje em dia, na esfera social, impera um pensamento débil e frágil, para se fugir a todo o custo do sacrifício e não se questionar o hedonismo e o comodismo da vida. Deixámos cair os grandes ideais que davam sentido e realização à vida humana. Acho que é tempo de os reabilitar, com uma nova configuração. No ser humano há um anseio profundo de superação e de luta por bens maiores, em ordem a uma excelência e a uma perfeição, que os ideais, de alguma forma, preenchem.
Em terceiro lugar, José Saramago era ateu convicto, com alguns tiques de crente inquieto. A questão de Deus agudizou-se mais na sua vida depois da queda do muro de Berlim, caindo definitivamente por terra a crença no comunismo e na sua concretização histórica. Mais uma ideologia sem Deus que mostrava a sua insuficiência e imperfeição. Inexplicavelmente, muitos comunistas, entre eles José Saramago, começaram a culpar Deus por não ter feito aquilo que eles pensavam que poderiam fazer com a instauração do comunismo. Deus passou a ser assim o alvo fácil para apontar todas as culpas e todos os males e o interlocutor silencioso a quem dirigir todos os desabafos amargos e corrosivos, quando o grande culpado é o pecado humano e as estruturas desumanas e injustas que ele criou. Mas considerações comunistas à parte, o que quero sublinhar é que, pelo facto de ter sido um ateu activo e empedernido, dotado de uma descrença militante e não de conveniência, José Saramago deu um grande contributo aos crentes e à religião, porque contribuiu para a consciencialização de concepções erradas dentro do pensamento religioso e ajudou a identificar incongruências dentro das religiões e da vivência religiosa. Em vários momentos, envolveu-se em polémicas com a Igreja católica, algumas delas injustificáveis e fúteis é verdade, mostrando um Saramago acintoso, cheio de resistências acumuladas ao longo dos últimos anos, mas que contribuíram para a Igreja se dar conta que tem de reformular o seu discurso e o seu ensino, purificando-os dos seus exageros e desconexões, obedecendo à mais elementar racionalidade. Fazem mais falta à Igreja os bons ateus do que os crentes amorfos e acríticos. Não nos esqueçamos que muitas pessoas são ateias devido à forma como as religiões apresentam Deus e o testemunham. E José Saramago despertou-nos para isso.
Ele era ateu. Em parte também o devemos ser. O deus que os homens criaram e que gostamos de fazer à nossa maneira não existe. Nesse deus não devemos acreditar. Deus está muito para além dos nossos conceitos e ideias. Quanto ao Deus de Jesus Cristo, aí a história é outra. Descobre-se melhor pelo coração do que pela razão. Por esta também lá chegamos, se formos honestos. Vale a pena reflectir sobre o que Ele disse, numa entrevista ao Jornal Expresso a 11 de Outubro de 2008: «Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma».