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minhas notas

19.07.14

A cantora americana Toni Braxton, no seu livro de memórias, “Unbreak My Heart”, afirma que, possivelmente, o facto de ter um filho autista foi uma vingança de Deus, porque em 2001 fez um aborto. Escreve a cantora: «No meu coração, eu acredito que tenha tirado uma vida – uma ação pela qual eu achava que Deus um dia me puniria. Acredito que Deus me tenha dado o troco, dando-me um filho com autismo». Como não podia deixar de ser, a afirmação gerou polémica, porque de facto é polémica. Foi comentada por todas as redes socias, com comentários para todos os gostos, não faltando, claro, os insultos e os mais ignóbeis que se possa imaginar. Em muitas pessoas, há uma falta de ética e de respeito pelos outros, que nos deixam nas fronteiras do desespero. Interessantes foram alguns escritos por algumas mães que têm filhos com autismo.

Não sei se a cantora escreveu este desabafo para dar visibilidade ao livro e obter mais uns dividendos. Estamos fartos destas cenas e destas jogadas dos «famosos». E também não sei se a cantora escreve este desafogo com verdadeira convicção, sem se deixar enredar na velha interpretação justiceira das surpresas menos agradáveis da vida. Uma coisa parece clara: o sentimento de culpa acompanha-nos por muito tempo, senão até toda uma vida, e é difícil geri-lo. Desengane-se quem pensa que pode afastar ou silenciar a voz da consciência e passar levemente pelas coisas e pelos acontecimentos, sem juízo, critério e exigência moral. Tudo na vida deixa marcas e traz consequências, para o bem e para o mal, neste caso uma difícil gestão de um sentimento de culpa por uma decisão errada.

Humanamente, a afirmação da cantora é incompreensível. Que culpa tem a criança que nasceu que a sua mãe tenha tomado uma má decisão noutros tempos? Os erros de uns são pagos por outros que nada têm a ver com isso, sendo-lhes à partida, sem mais nem menos, negada uma vida normal, feliz e realizada? Religiosamente, o desabafo da artista não tem qualquer sustentação e merece todo o repúdio. Deus está a ser chamado para onde não deve ser chamado. Infelizmente, esta interpretação justiceira da vida, que tem como principal ator um deus vingativo e castigador, anda excessivamente por aí no espírito de muitas pessoas, sem qualquer fundamento. Escutamos com muita facilidade afirmações como «que mal fiz a Deus para ter este castigo», «aceito isto porque tinha de as pagar mais tarde ou mais cedo», «Deus é grande e não dorme, espera pela desforra», «está a pagá-las», entre outras. E fico espantado com o requinte sádico com que algumas pessoas as proferem. O que nos acontece na vida é fruto das fragilidades da condição humana e das más opções e decisões que tomamos e não ações de um deus que se deleita em fazer ajustes de contas e em esmagar as pessoas. Muito pelo contrário, em Cristo, Deus não mostra senão que quer uma vida em plenitude para todos, feliz e realizada, liberta de todos os males e escolhos que a destruam e oprimam. É inaceitável que crentes em Deus alimentem a convicção de que a vida tem de ter uma desforra e que Deus pague o mal com mais mal ainda. Nada disto tem a ver com a atuação de Jesus Cristo e com o seu Evangelho, logo é uma atribuição abusiva que fazemos a Deus. Deus está sempre do lado do bem, da vida e da felicidade. E se há dado que Jesus Cristo deixou bem claro é que o mal que o mal causa já é mais do que suficiente e penoso, sendo necessário vencê-lo com a força da conversão e do bem.

O que o desabafo da cantora americana deixa transparecer é que ainda estamos ferreamente agarrados ao velho esquema moral de que todo o bem tem de ter uma recompensa e todo o mal tem de ter um castigo e uma redenção. E não tem de ser exatamente assim. Relativamente ao bem, Jesus lembrou-nos a gratuidade. Em relação ao mal, Jesus lembrou-nos o perdão e a misericórdia. Na escritura, sobretudo no Antigo Testamento, percebe-se que, durante algum tempo, no povo judeu imperou a ideia de que Deus retribui imediatamente a cada um conforme as suas obras. Mas com o tempo começou-se a pôr em causa esta convicção porque aquele que era temente a Deus, por vezes, enfrentava mais males do que aquele que não era temente a Deus. Com Jesus Cristo, sanou-se definitivamente esta velha crença da retribuição. Deus é amor e é amigo da vida e não quer senão a vida em abundância daqueles que criou e salvou e que continuamente sustenta. Arrumemos de uma vez por todas o deus vingativo e castigador, que nós criámos, porque não tem nada a ver com a identidade e a verdade de Deus, tal como Jesus Cristo no-la revelou.

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