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minhas notas

09.02.17

Plantu, cartoonista do jornal francês Le Monde, disse há dias, numa entrevista à revista Visão: «Há uma revolução a fazer nas escolas, nos media, na política. Não estamos preparados para a era da internet. Temos um instrumento genial, mas que não sabemos controlar».
Não sabemos controlar e até estamos a deixar que nos torne dependentes. Passamos horas e horas à frente de monitores e com telemóveis nas mãos, a mandarmos e a recebermos não sei quantas mensagens sem qualquer fundamento ou conteúdo, viciados em sms e em comunicação fútil. E chegámos aqui porque, como escreveu Pacheco Pereira no Público, vivemos em «sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interações de grupo, sem movimentos coletivos de interesse comum que dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de relacionamento que se tornam aditivas como a droga. Não há maior punição para um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona como uma linha de vida.»
Vou acompanhando com alguma atenção as denominadas redes sociais, onde também estou presente e donde já tive mil desejos de sair, mas na última da hora o dedo não desce para o teclado, porque encontro sempre algo de positivo para continuar. Mas assumo muito desapontamento. Primeiro, porque muito raramente são redes. Há alguns casos de sucesso, mas poucos. Tagarela-se, publica-se, comenta-se, mas na vida tudo continua na mesma, cada um no seu canto. Tornámo-nos mais presentes uns para os outros, aumentámos o falatório, mas isso não significa um aprofundamento das relações humanas e um enriquecimento humano significativo. Depois, porque de social têm muito pouco, e por social eu entendo que ajudam a cimentar a interação e a aproximação entre pessoas, mas o que vejo crescer não é a abertura aos outros, a capacidade de escuta, o diálogo, a tolerância, o respeito pela diferença, a comunhão e o espírito de comunidade ou de fraternidade, mas o insulto, o ódio, a crítica leviana e mordaz, até mesmo parola, a maledicência, a calúnia, a banalidade noticiosa, a falsidade, a dissimulação, a ignorância, a agressividade entre pessoas e grupos. É verdade que as redes sociais são complementares para a verdadeira relação e comunicação que devemos ter uns com os outros todos os dias (atenção que já há muitas pessoas que vivem mais no virtual do que no real), mas mesmo assim esperava muito mais.
Com a internet e as redes socias, estamo-nos a transformar em sociedades confessionais, o que não deixa de ser surpreendente e intrigante. Reparemos como o Facebook e outras redes sociais se estão a tornar autênticos confessionários, onde vemos pessoas a contar a sua vida toda e até a expor a sua intimidade e privacidade. Mostra-se o batizado e o casamento, a festa de anos, as viagens que se fazem, o almoço e o jantar, as idas à discoteca, os banhos na piscina, a roupa nova que se estreou, o novo telemóvel que se comprou, o piloto a fazer piruetas com a bola, mostra-se a casa, apresentam-se habilidades, retratam-se estados de alma, prometem-se vinganças, choram-se traições, descarregam-se raivas, desforram-se inimizades, partilham-se desabafos de toda a espécie, mais estive aqui, mais estive ali, até o luto já tem lugar nas redes sociais. Que necessidade teremos de dizer isto aos outros e porque carga de água é que os outros têm de saber a nossa vida? Ou não saberemos viver sem os olhos e a aprovação e a presença dos outros? Parece que só sabemos viver se os outros estiverem a ver. O que noutros tempos só acontecia no encontro com um sacerdote, no segredo e na serenidade dum confessionário, algo que a Igreja sempre procurou fazer e faz com muito respeito e dignidade e que muitos padres fazem de forma magistral, agora passou para o Facebook e outras redes sociais. É interessante notar que este fenómeno acontece numa sociedade ciosa e radical na defesa dos direitos individuais, onde se proclama que quase não existe nada de mais sagrado do que a vida íntima e a vida privada das pessoas, que só a cada um diz respeito. Mas, contraditoriamente, é o que mais se vê e publica nas redes sociais.
Dizem os estudiosos da surpreendente e imprevisível natureza humana, que o ser humano tem sempre a necessidade, bem conhecida, de expressar sentimentos, partilhar medos, crenças e emoções, de falar de si e dos meandros da sua alma e dos outros. Mas há quem vá ainda mais longe: num mundo de muita oferta, é preciso saber chamar a atenção, e muitos até recorrem à exposição da sua intimidade para ver se caem nas boas graças de alguém. Num mundo de mercado, em que quase tudo se compra e vende, não há que olhar a meios para atingir os fins. Se usamos a nossa intimidade para ser uma mercadoria atraente para alguém ou até para simples exibição, é uma opção lamentável e põe a manifesto o aviltamento a que está chegar a dignidade de muitas pessoas.
As redes socias, na minha modesta opinião, são para partilharmos e comunicarmos coisas interessantes, que possam enriquecer a vida de todos ou até enriquecer o debate público, com o justo espírito crítico que se lhe exige, e não para andarmos a contar a nossa vida toda aos outros, por vezes num exibicionismo pacóvio, fazendo dos outros uns voyeuristas da nossa vida.

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