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minhas notas

21.12.15

Já repararam que aproveito este espaço, que agradeço ao digníssimo diretor deste nobre jornal, para oferecer um pouco de doutrina, formação e cultura religiosa católicas, porque vou encontrando lacunas, mal-entendidos e desvios sobre a fé cristã. São os artigos que me dão mais gozo. Comentar a atualidade, e que rica, aterradora e complexa ela está, por vezes, é um trabalho insípido, porque a realidade está sempre em acelerada mutação. Fica sempre a sensação de que andamos atrás do efémero. Há que dar mais importância ao que é sólido e traz firmeza e formação à vida. Faço-o a partir da minha pobreza e auxiliado pela minha preciosa instrução e pelas minhas amantes (tenho algumas, não digam nada, uma delas é a leitura). Bom proveito.

A doutrina do pecado original vai merecendo alguns reparos de teólogos e pensadores cristãos e não cristãos. Alguns já quase a rejeitam, condenando a importância excessiva na doutrina e no pensamento da Igreja, outros reinterpretam-na com alguma consistência (vale a pena ler o que vai saindo, numa releitura dos difíceis e polémicos primeiros capítulos do Livro do Génesis, com o contributo do pensamento cientifico), outros ainda reafirmam a sua validade. Para todos os efeitos, ainda não foi revogada pela Igreja e continua em vigor. No ritual do batismo, está lá muito bem claro: «Deus todo-poderoso e eterno, que enviastes ao mundo o vosso Filho para expulsar de nós o poder de Satanás, espírito do mal, e transferir o homem, arrebatado às trevas, para o reino admirável da vossa luz, humildemente Vos pedimos que esta criança, libertada da mancha original, se torne morada do Espírito Santo e templo da vossa glória.»

O que é que queremos dizer, afinal, com o pecado original? Aqui original significa o pecado que vem das origens, do início da humanidade, pecado que inquinou a história do mundo e do homem, que transformou a natureza do homem e das coisas. Que pecado foi esse?

O projeto inicial de Deus em relação ao homem foi que este alcançasse a plenitude integral do seu ser numa relação de amor e de vida com Deus. O homem seria o interlocutor livre, que livremente responderia ao convite livre do amor de Deus, para ambos viverem em comunhão e aliança.

Mas, ao convite de Deus, o homem respondeu com desprezo e rejeição. Julgou que esta aliança seria uma servidão e uma dependência. O homem decidiu não viver de Deus, que, como seu criador, seria a fonte da sua vida plena, e escolheu seguir o seu próprio caminho, dispor de si mesmo e da sua vida como muito bem entendesse, sem depender de nada nem de ninguém (não é esta tentação diabólica que anda sempre de nós?). Da harmonia sonhada por Deus entre a sua vontade e a vontade do homem, resultou uma cisão trágica entre as duas vontades.

Esta rutura com Deus revestiu-se de um caráter dramático: por orgulho e iniciativa do homem, o mundo começou a ser construído contra a vontade de Deus, e assim a realidade do pecado e do mal contaminaram o mundo e todo o desdobramento cultural da existência humana. O veneno do mal e do pecado passou a inquinar toda a história humana. Quebrou-se de modo irreversível a comunicação e a comunhão entre Deus e homem. Este desviou-se tragicamente da verdade que estava inscrita na sua natureza, alienando-se do seu ser mais autêntico, procurando a verdadeira vida onde ela não está, em si mesmo ou nos muitos sucedâneos que ele inventa para a encontrar. A negação da comunhão e da relação com Deus implicou uma outra forma, deteriorada, de se relacionar consigo mesmo, com o outro e com a criação. O homem torna-se estranho a Deus, tornando-se estranho a si mesmo. A história humana foi assim indelevelmente marcada pela presença do pecado, que corrompe o homem, o afasta de Deus e o vira contra si mesmo, contra os outros e contra a criação.

Por pecado original não queremos isolar ou identificar um pecado concreto, que exista em estado puro, de forma abstrata e irreal, ou uma força malévola que influencia o ser humano, mas afirmar que a nossa história humana está marcada pela presença do mal e queremos destacar o ambiente, o espaço vital, o estado nocivo da humanidade em que nasce cada ser humano, estado que o corrompe, que o diminui e aliena, não o deixando ser o homem que deve ser, em comunhão com Deus, com os outros e com a criação.

Podemos ver manifestações do estado nocivo da humanidade em situações concretas, tanto pessoais, como estruturais e sociais: nas injustiças, violências, marginalizações, no ódio destruidor, na vontade pura de domínio e de poder, na avareza humana, no orgulho, no egoísmo, nas ideologias totalitárias, na sobrevalorização das coisas em relação à pessoa humana, que uma sociedade de consumo gera, a exploração e degradação do homem que a economia do lucro origina, a destruição da natureza, a ciência manipuladora e mortífera, entre outras. Todas estas situações alienam o homem, ou seja, privam-no do seu ser verdadeiro. O homem, chamado ser homem e a ir mais além de si mesmo, fica abaixo de si mesmo. Dentro de nós mesmos, não podemos deixar de experimentar ainda, mesmo depois de batizados, um grande dilema e uma grande tentação e divisão: queremos fazer o bem, mas experimentamos uma atração para fazer o contrário. Ainda estamos feridos no nosso ser profundo e somos facilmente influenciados pela cultura e pelo ambiente pecaminoso em que nascemos. Como disse Bento XVI, «todos trazemos dentro de nós próprios uma gota do veneno, chamado pecado original».

O pecado e o mal entranharam-se de tal maneira na mentalidade e na cultura humana, que o homem, só por si, se tornou incapaz de os vencer. Tornou-se necessária uma redenção, uma libertação desta servidão, esta sim, uma servidão a sério, para o homem recuperar a sua dignidade e a sua vocação, redenção que seria ao mesmo tempo uma recriação do homem, do mundo e da história, redenção que certamente já estaria nos planos de Deus. Criar o homem livre teria os seus riscos.

Deus envia o seu Filho ao mundo. Pela sua morte e ressurreição redimiu e deu vida nova (salvação) à humanidade, colocando-a na senda do projeto inicial de Deus. Diz Bento XVI: «A ressurreição de Jesus Cristo significa precisamente a libertação desta servidão, desta e de todas. Aceitar Jesus Cristo, na fé, e dispor-se a segui-lo, significa aceitar que com Ele saímos da opressão do pecado e do mal e vencemos a alienação interior que não nos deixar ser o que de verdade devemos ser, que impede a nossa realização plena e que alcancemos o nosso verdadeiro destino.»

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