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minhas notas

22.04.15

Na vida, confrontamo-nos com vários tipos de críticos: os imprudentes, que sem conhecerem a nossa vida e as verdadeiras razões porque atuamos de determinada maneira, fazem juízos de valor generalistas injustos; os acríticos e oportunistas, que quando os outros criticam também aproveitam para criticar, para fazer coro, na convicção de que picadas de vespa nunca mataram ninguém; os invejosos, que não podem ver o sucesso e a sombra dos outros; os verrinosos e cáusticos, que têm gosto, mau, diga-se de passagem, em só dizer mal e salientar e depreciar exageradamente o que dizemos e fazemos; os figadais, que se deixam guiar por ódios e inimizades, passando boa parte do seu tempo a descarregar sobre os outros a sua bílis intratável. Jesus Cristo mandou-nos rezar por eles e é o melhor que temos a fazer. Possivelmente, são pessoas que nunca na vida se sentiram bem consigo mesmas, quanto mais com os outros; os oportunos, que encontramos esporadicamente e que devido à sua experiência e sabedoria, nos ajudam a evitar erros e a corrigir atitudes e excessos; para o fim, entre outros que ainda se poderiam enumerar, deixo os bons críticos, pessoas amigas que nos querem bem e nos querem ver melhorar e progredir e que, para isso, com sinceridade, nos fazem boas críticas. Ter humildade suficiente para os ouvir é sinal de maturidade, porque ninguém é perfeito e faz tudo perfeito. Quem não sabe conviver com a crítica justa e construtiva ainda tem uns bons centímetros para crescer. Os bons críticos favorecem a perfeição e ajudam a abater tontices e credulidades tansas.

Erasmo de Roterdão foi um desses críticos para a Igreja do seu tempo, ou de todos os tempos, como vamos ver. Foi um teólogo e um humanista holandês que viveu nos séculos 15 e 16. Em 1509 publicou um pequeno livro, «Elogio da Loucura», obra dedicada a Tomás More, onde, com irreverência e sarcasmo, faz uma grande crítica à vida monástica e aos excessos e práticas grosseiras e balofas da Igreja Católica. Na introdução dirigida a Tomás More, diz: «Uma sátira que não exclui género de vida, não ataca qualquer homem particular, mas os vícios de todos, (…) procurei mais a volúpia do que a mordacidade, cataloguei as coisas ridículas e não as vergonhosas.» Algumas da suas críticas continuam atuais e é importante escutá-las com atenção e serenidade. Afinal, o ser humano tem tendências que se refletem em todas as épocas e tempos. A ignorância espreita todos os cantinhos para se tornar nossa conselheira a toda a hora.

Nas homilias, é preciso algum cuidado. Diz Erasmo: «São, sem dúvida, da nossa farinha os homens que se deleitam com histórias de milagres e prodígios, quer escutando-as, quer narrando-as, e que não se saciam com fábulas portentosas, de espectros, lémures, fantasmas e infernos. Quanto mais longe estiverem da verdade, maior crédito merecem àqueles que para as ouvirem estremecem as orelhas com alegria. Estas narrativas não tendem só a matar o tédio das horas, mas dão também algum proveito, especialmente aos clérigos e aos pregadores».

Temos uma cultura do elogio fácil, para se agradar às pessoas ou porque pensamos que as pessoas não conseguem viver sem elogios. E há quem viva só para os elogios, porque a «a adulação é uma grande parte da tão louvada eloquência, maior ainda na medicina, máxima na poética: é o mel e o condimento de todos os costumes humanos.»

Interessante também é a crítica que ele faz aos nossos gostos auditivos e à qualidade da nossa vida intelectual e como é penoso constatarmos como isto está mais entranhado em nós do que pode parecer: «O ânimo do homem é de tal maneira esculpido que muito mais lhe agrada a ficção, do que a verdade. Experimentai. Ide ao templo ouvir o pregador. Se este narra coisas sérias, bocejam ou dormitam de aborrecimento. Mas se o declamador (desculpai o lapso, queria dizer o pregador) procedendo como quase sempre, entra no exórdio por uma fábula, todos despertam e prestam ouvidos. Do mesmo modo, quando se trata de um santo fabuloso e poético, como por exemplo S. Jorge, S. Cristóvão, Santa Bárbara, vereis que eles têm muito mais devotos do que S. Pedro, S. Paulo ou o próprio Cristo.» Como padre, acho que o entendo muito bem.

A teologia é fundamental dentro de uma religião. Sem teologia, a religião fica reduzida a uma crendice e a um rebanho de piedosos ignorantes. Mas convém que os teólogos não se estiquem: «A erudição dessa gente é tanta, tantas são as dificuldades que eles apresentam, que os próprios apóstolos teriam de receber outro Espírito Santo para discutirem esses assuntos com os novos teólogos».

Inaceitável também é a crendice e a religiosidade mágica, a roçar o bacoco: «A turba oferece à Virgem, mãe de Deus, uma vela, até mesmo ao meio-dia, que não lhe serve para nada. Mas poucos se esforçam por imitar as virtudes, a caridade, a modéstia, o amor das coisas celestes.»

Infelizmente, vivemos tempos em que a verdade e as coisas sérias da vida não estão no cimo das prioridades. A diversão, a fantochada, o pagode, a troça e a ficção são senhoras do tempo, porque «destruir a ilusão é destruir a arte. Eram a ficção e o disfarce o que prendia a atenção dos espectadores. Toda a vida dos mortais não passa de uma comédia, na qual todos procedem conforme a máscara que usam, todos representam o seu papel, até que o contra-regra os mande sair de cena.»

E será fácil mudar mentalidades? «A razão pode gritar até enrouquecer para fazer cumprir as fórmulas da honestidade; é rainha a que os homens não obedecem, a que os homens replicam com injúrias, até que emudeça ou se declare vencida.»

Isto foi escrito há quinhentos anos!

 

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