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minhas notas

07.05.13

Os cristãos, no fim da vida terrena, celebram as exéquias (atos finais, seguir e acompanhar alguém até ao fim), ou mais conhecido entre nós, o funeral, o enterro: conjunto de ritos e orações para se suplicar a Deus a purificação dos pecados e de todo o mal e a entrada na plenitude da vida de um batizado em Cristo e membro da Igreja, ritos que devem ser celebrados com dignidade e simplicidade. O momento mais importante das exéquias é a celebração da Eucaristia, memorial da Páscoa de Jesus Cristo, sacrifício oferecido para a remissão dos pecados e celebração da passagem da morte para a vida em Deus do falecido, participando no mistério pascal de Jesus Cristo. Aliás, a Igreja lembra, em primeiro lugar, isso mesmo: todo o funeral é uma celebração do mistério pascal de Jesus Cristo. É uma atualização da sua entrega pela humanidade e da sua morte e da sua vitória sobre a morte, passando para Deus Pai, onde vive eternamente. No fim da sua vida, todo o cristão, unido a Cristo, atinge e participa na plenitude deste mistério, que já começou a ser vivido no dia do Batismo.

 

Nestas horas dolorosas da vida, todos os cristãos são convidados a reunirem-se para, solidariamente, agradecerem a Deus os dons com que cumulou a vida do falecido e tudo o que de bom dele receberam,  oferecerem uma última prece redentora por ele e dar consolação e fortalecimento à esperança da família enlutada. Um falecido não é apenas um familiar, um amigo ou um habitante duma determinada terra. É um membro de uma comunidade cristã que deixa o mundo e parte para Deus. Toda a comunidade cristã, de que ele fazia parte, dentro do possível, em profunda comunhão com ele e com a família, deve marcar presença, porque a comunidade também está de luto e perdeu um dos seus membros, que se alimentou dela e viveu para ela. Há uma íntima união e fraternidade entre todos os cristãos, que deve ser sempre celebrada, vivida, reforçada e manifestada. Assim o recomenda a Igreja.

 

Mediante este entendimento e estes pressupostos, e escusado será dizer que não foco nenhum funeral em concreto, mas a sua globalidade, já reparámos que há alguns aspetos que é preciso melhorar na vivência dos nossos funerais. Infelizmente, verifico que o verdadeiro espírito cristão e comunitário anda ausente de muitos funerais. Em primeiro lugar, lembremos que a razão primeira e última que nos leva a participar ou que nos deve levar a participar num funeral é a partida de um cristão que fazia parte da comunidade, seja ele quem for, e não apenas a amizade, a ligação à família ou a aceitação e estatuto social da pessoa falecida, que são os critérios mais notados na conduta das pessoas. Noto que a vivência comunitária dos funerais ainda tem muito para crescer, talvez porque a dimensão comunitária anda muito ausente da vida de muitos cristãos e não se entende a fé cristã como pertença a uma comunidade, como de facto é.  

 Em segundo lugar, se é certo que há legitimidade para se homenagear quem partiu, os funerais não são meras homenagens ou despedidas, cumpridas com formalismo, nem muito menos são momentos para elegias e panegíricos de todo o tipo, dirigidos quer ao falecido ou à sua família, que obscureçam a oração e o centralismo de Jesus Cristo. Para isso, não se ia à Igreja. São momentos de oração e de encontro com Jesus Cristo, razão de ser de todo o ato. São, primeiro que tudo, momentos de celebração e de testemunho da fé cristã. É inaceitável a indiferença que muitos cristãos (ou ditos cristãos) dão à liturgia cristã (muitos querem ver passar a missa como gato sobre brasas), como também é inaceitável o acrescento de elementos de cariz meramente sentimentalista, estranhos ao espírito da liturgia das exéquias. Isto não quer dizer que não existam traços humanos e sociais que mereçam destaque. Há um momento para isso, que deve ser realizado com sobriedade e sem vanglória.

Em terceiro lugar, seria bom evitar o exibicionismo nos funerais. A Igreja assim o recomenda: «Na celebração das Exéquias, além da distinção baseada no ministério litúrgico e na Ordem sacra, e excetuando as honras devidas às autoridades civis, segundo as leis litúrgicas, não se faça qualquer aceção de pessoas particulares ou de condições sociais, quer nas cerimónias quer no aparato exterior». É inaceitável, e com grave dano para o testemunho cristão, que se aproveitem os funerais para ser mostrar o poder económico e social ou para se marcar a diferença pela diferença, com orgulho. Diante de Deus, todos os homens são iguais em dignidade e valor. Convinha que esta profunda igualdade entre todos os homens fosse notória na hora dos funerais. Seria bom evitar algum aparato desnecessário e despropositado, assim como seria bom e correto não se fazer aceção de pessoas, em que se veem funerais com multidões e outros que mal têm pessoas para se cumprirem as exéquias com dignidade e primor. E não é só devido à disponibilidade, porque as pessoas para o que querem arranjam disponilidade. Então, afinal, o que conta é o dinheiro e a importância que a pessoa falecida ou família têm e a utilidade que têm ou tiveram para nós? A sociedade, que é tão sensível à desigualdade entre ricos e pobres ou a outra qualquer categoria que diferencia as pessoas, deixa que isso mesmo seja manifesto na hora dos funerais. É justo e correto que assim seja? É correto que cristãos assim o façam? Um cristão rege-se por critérios e valores evangélicos e cristãos e não por critérios e valores mundanos.

 

Para finalizar, sublinho mais dois aspetos que me desagradam: não tem sentido os «funerais julgamento», que se fazem a certas pessoas. Quando questiono a pouca participação das pessoas, por vezes, dizem-me que talvez se deva ao pouco merecimento da pessoa. Quem nos constituiu juízes dos outros? Será que nós cristãos não devemos ter um último gesto de solidariedade e amabilidade para com aquele cristão? Não é isso que nos fica mesmo bem? Ser cristão não é testemunhar a gratuidade e o amor para lá da justiça? Tenho todo o respeito pela dor das pessoas e todas as pessoas têm direito a expressar a sua dor e cada pessoa tem a sua forma de o fazer. Mas há prantos que se revestem de um alarido e aparato excessivo, porque até acredito que, em particular, muitas pessoas não choram como choram diante dos outros. Carpir para ver e ouvir não é lá muito bonito. Por vezes, tem mais força o silêncio e a serenidade. 

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