05.11.10
Escrevi no meu último artigo que a actual crise económico-financeira é reflexo de uma profunda crise de valores humanos, éticos, sociais, económicos e individuais, nas sociedades actuais. Continuando nesta mesma temática, gostaria, antes de mais, de esclarecer duas questões, que muitas pessoas já colocaram a si próprias: Mas, afinal, o que são valores? Porque é que são importantes? Pode-se falar de crise de valores? De facto, poderemos andar a falar de valores para aqui e valores para acolá e não saber bem do que andamos a falar. Sem ter a leviandade de dar uma resposta cabal e de precisão universitária, valores são fundamentos que estruturam a personalidade de uma pessoa e que orientam a sua acção e relação consigo mesma e com as outras pessoas. Cada pessoa humana exibe toda uma configuração de vida de acordo com os valores que perfilha. Quando não se têm valores, não sobressai um carácter e uma forma de estar na vida. Vive-se ao sabor das ondas e das modas e subordinado ao interesse próprio e imediato, deambulando-se permanentemente ao bel-prazer de improvisos, impulsos e apetites, sem horizonte de realização. A interiorização e assimilação de valores capacitam a pessoa humana para ser o que deve ser. Dificilmente uma pessoa humana se realiza e atinge o máximo da sua humanização sem valores. Por outro lado, a expressão ‘crise de valores’ pode ser ambígua e geradora de reservas. Nunca há uma crise de valores porque valores há sempre, podem é não ser os que consideramos inquestionáveis e fundamentais. Na nossa sociedade actual, há valores que norteiam os actos e as decisões das pessoas (ex: o consumismo, o culto da imagem, o materialismo, a ganância, entre outros). Não são é bons valores (há quem lhes chame contra-valores) e por isso mesmo, quando falamos em crise de valores, queremos dizer que os bons, os verdadeiros valores que deviam estruturar a personalidade e a vida das pessoas não imperam actualmente, mergulhando-nos num penoso relativismo moral e ético, fortemente veiculado pelos meios de comunicação social, aproveitando o desfasamento da educação familiar e a inconstância da educação institucional.
Dois contra-valores, que nefastamente deixaram marcas indeléveis na nossa cultura actual, são o individualismo e o hedonismo. Actualmente vivemos numa cultura que privilegia o individualismo. O conceito de comunidade e de pertença a uma comunidade, partilhando as suas dores e esperanças, esvaiu-se. A solidariedade é muito pontual. Nem o trabalho é entendido como solidariedade com uma comunidade. As pessoas pensam e organizam muito a sua vida em função das suas conveniências e dos seus interesses. E se investem na comunidade é porque isso lhes traz vantagens e está de acordo com o seu mundo de interesses. Cada pessoa tem tendência em só pensar em si e viver em função de si. A própria legislação tem seguido o caminho do alargamento dos direitos do indivíduo, de forma que a sua satisfação possa estar sempre assegurada. Quem é que hoje faz alguma coisa a pensar na sua pátria? Salvo raras excepções, quanto tempo se investe em viver para os outros, que não seja remunerado? Mas não há sociedades equilibradas onde impera o individualismo. A família e o casamento são duas realidades onde facilmente se verifica o contágio do individualismo.
Outro contra-valor que actualmente tem honras no coração humano e na vida social é o hedonismo. Privilegia-se tudo o que exige pouco esforço e que dá prazer, egoisticamente usufruído. Só que viver a vida em função do prazer, leva a descurar valores fundamentais: aceitação do trabalho como forma de melhoramento do mundo e de construção do bem comum (muitas pessoas hoje querem viver sem trabalhar), capacidade de viver com sacrifício e de resistir às dificuldades e de enfrentar o sofrimento, partilha de responsabilidades, celebração e respeito por acordos e compromissos, disciplina para bem servir os outros. Uma das causas da nossa baixa natalidade (que está a pôr em causa a sustentabilidade da nossa segurança social e de outros sistemas sociais), não esquecendo outros factores, são estes dois contra-valores. Constituir família e gerar e criar filhos é encarado como uma maçada para a mentalidade actual. Hoje prefere-se ter dinheiro e gozar a vida do que entregar-se aos sacrifícios de uma família. Poder levar uma vida levezinha, com poucos encargos e responsabilidades, ao sabor dos prazeres mundanos, com muitos bens materiais e muito sucesso, é o ideal de vida a que muita gente aspira. Mas é um ideal de vida incomportável.
Como não podia deixar de ser, esta urdidura de contra-valores, mais tarde ou mais cedo, teriam que nos arrastar para desequilíbrios e para o empobrecimento da vida das nossas sociedades. Se queremos, de facto, ultrapassar a crise, temos de perceber que precisamos de apostar a vida noutros valores, nos verdadeiros valores que nos dão equilíbrio e realização, e sermos mais exigentes no horizonte ético e moral das nossas atitudes, comportamentos e acções. Se não resolvermos e enfrentarmos a crise moral que, neste momento, nos atinge, qualquer operação económico-financeira não passará de mais um passo para outra crise. A maquilhagem disfarça, mas não resolve.