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minhas notas

02.09.10

 

Alguns dos bons professores que encontrei no ensino, pressentindo algum desleixo e fraca assimilação das matérias por parte dos alunos, que a correcção dos exames comprovaria, a primeira afirmação que proferiam, com ar reverencial e com alguma jocosidade, era: ‘chumbaria velha’. Metade da turma ou quase metade tinha nota negativa nos exames. A afirmação escondia muitos outros nomes com que os professores bem gostariam de chibatar os malandros, amantes da preguiça. Mas, os que tinham negativa, seriam todos preguiçosos? Isso não era verdade. Tive muitos colegas que, apesar de dedicarem muitas horas ao estudo, nem sempre obtinham bons resultados. Mas quando mudavam de método e se organizavam melhor e tinham um colega paciente que se dispunha a dar uma ajuda, os resultados eram positivos.

A afirmação ‘chumbaria velha’ é expressão de um sistema de ensino que foi cristalizado ao longo de séculos, mas que está cheio de lacunas. A escola dá as condições; o professor debita os conhecimentos; o aluno assimila os conhecimentos, pouco importando a motivação e as dificuldades com que o faz; organizam-se exames; quem tem positiva passa, quem tem negativa fica retido; fecham-se as portas e para o ano há mais. E assim se vai afastando muitos alunos da escola e mecanizando outros para saberem passar de ano, para terem um diploma, e não a saber estudar por amor ao saber e ao conhecimento. Ao longo da minha vida estudantil, aprendi uma verdade, que ainda hoje me orienta, e que o nosso sistema de ensino olvida, embora já sejam notórias algumas mudanças: cada aluno tem o seu ritmo e as suas necessidades e apesar de alunos de uma mesma turma terem a mesma idade, a maturidade e o crescimento de cada um é diferente. Alguns até já poderiam estar num ano mais à frente e outros não deveriam estar naquele ano. Uma turma é um conjunto de grupos heterogéneos, que andam a várias velocidades, e não um grupo homogéneo. Além do mais, uma pessoa humana tem que ser encarada como um todo, dotada de inteligência, de afectividade, espiritualidade, que estão em permanente interacção dentro da pessoa e quando essa interacção não é harmoniosa, o rendimento da pessoa humana pode ser pouco satisfatório. Não me esqueço de um jovem colega que tive no segundo ciclo. Era espertíssimo, mas era extremamente tímido. Tinha grandes dificuldades em se relacionar com os colegas e quando era interpelado pelo professor, só não saltava da janela se não pudesse, porque bloqueava, originando quase sempre a irrisão geral. Mas quando estava mais à vontade, o que acontecia poucas vezes, notava-se uma inteligência acima da média. Devido ao fraco desempenho nas salas de aula e a um ambiente pouco favorável na escola e em casa, não demorou muito a deixar a escola. Com outro apoio e outra atenção, o rapaz poderia hoje ter outra formação e serviria melhor o país com a sua inteligência. Quantos jovens como ele não tem o nosso ensino, crescendo num ambiente onde se valoriza pouco a educação e o saber, vida familiar conturbada e mal organizada, vícios de vária ordem.

Isto para dizer que não acho descabida de todo a proposta da Senhora Ministra da Educação de acabar com os chumbos no ensino, como parece que um chorrilho de especialistas da educação, de membros partidários e de comentadores da imprensa acham, vociferando, na sua maioria irreflectida e apressadamente, que a medida da Senhora Ministra é a auto-estrada para o facilitismo e o laxismo dentro das escolas, a não ser que a medida só tenha um intuito economicista. Porque se é certo que há alguns chumbos que são ‘justos’, mandriões que não puxam pelas suas capacidades, também há muitos que são injustos, porque não se respeitam as necessidades e o crescimento de cada aluno. A prioridade da escola deve ser proporcionar a todos os seus alunos condições para aprender, acompanhando-os e auxiliando-os nas suas dificuldades e problemas, para que cresçam como pessoas e adquiram conhecimentos, com caminhos diferentes e ritmos diferentes. Os exames devem continuar a existir, como é óbvio, mas para se avaliar o sucesso na aquisição dos conhecimentos e a progressão na aprendizagem e incentivar os alunos que estão no bom caminho e identificar os que precisam de mais apoio, e não tanto para dividir as turmas entre inteligentes e menos inteligentes, levando muitos ao abandono, sem terem uma educação razoável. Contam-se pelos dedos os chumbos que são benéficos, em todos os sentidos, devendo ser uma prática muito ponderada. Facilitismo pode ser o sistema que está instalado: olhando para todos os alunos de forma igual, o que não se deveria fazer porque são diferentes, apenas apresentar um caminho e uma estratégia, deixando-se depois os alunos que não tiveram sucesso para outro professor, obrigado a explicar tudo outra vez, com muito tédio e desmotivação à mistura do aluno. Exigência é apresentar ao aluno o seu próprio caminho para absorver as matérias, naquele mesmo ano, tendo-se em conta as suas dificuldades e lacunas.

Algumas medidas poderiam desde já ser tomadas: diminuir a carga horária dos alunos, ao que me parece é consensual, eliminando disciplinas cuja utilidade é muito duvidosa e criar uma interacção mais rigorosa e responsável entre família e escola. A família desempenha um papel fundamental no sucesso escolar dos alunos. Temos muito a crescer neste campo. Muitas famílias só querem é que o filho passe de ano. Se aprendeu muito ou pouco ou se está a adquirir métodos de trabalho pouco importa. Não pode ser assim. É preciso acompanhar de perto a evolução educativa do filho e criar em casa, em articulação com a escola, um ambiente de amor ao estudo e de valorização do saber.

É tempo de nascer um novo conceito de escola e de educação, mais versátil, abrangente, dinâmico, multifacetado, mais rica em apoios e recursos, e sobretudo mais humanizado, que vá de encontro ao colorido da realidade humana, custe muito ou pouco dinheiro. Não entendo como é que se questiona o dinheiro que se tem que investir na educação. Que se tenha que investir e gerir bem, estou de acordo, agora que se ponha em causa não compreendo. Para além de reflectir uma grande insensibilidade pela humanização das pessoas, porque o saber humaniza, manifesta também um grande desprezo pela democracia, porque não há democracia sem educação e sem cultura. A democracia tem sentido se tivermos cidadãos com livre acesso ao saber, que sabem pensar, dotados de consciência crítica, capacitados para o diálogo e para a sã discussão e partilha de pensamento.

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