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minhas notas

04.06.10

Continuando a minha breve revisitação ao livro ‘Introdução ao Cristianismo’ do Papa Bento XVI, quando era o professor Joseph Ratzinger, há uma parábola interessantíssima que o Papa conta na introdução do livro, a que ele chama a parábola do palhaço e a aldeia em chamas, que tinha sido descrita um dia por Kierkegaard, um grande filósofo do século XIX, e que Harvey Cox recontou no seu livro ‘A Cidade do Homem’. A parábola conta assim: “Certa vez, houve um incêndio num circo ambulante na Dinamarca. O director mandou imediatamente o palhaço, que já se encontrava vestido e maquilhado a preceito, para a vila mais próxima, à procura de ajuda, advertindo-o de que existia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos ceifados e ressequidos, com risco iminente para as casas do próprio povoado. O palhaço correu até à vila e pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que estava a destruir o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço apenas um belo truque de publicidade que visaria levá-los a acorrer em grande número às sessões do circo; aplaudiam e desatavam a rir. Diante dessa reacção, o palhaço sentiu mais vontade de chorar do que de rir. Fez de tudo para convencer as pessoas de que não estava a representar, de que não se tratava de um truque e sim de um apelo da maior seriedade: estava realmente em causa um incêndio. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos; eles achavam que a performance estava excelente – até que o fogo alcançou de facto aquela vila. Aí já foi tarde, e o fogo acabou por destruir não só o circo, mas também a povoação”.

Pobre palhaço. Com outra cara e indumentária, tudo seria diferente. Este palhaço, incapaz de convencer as pessoas e de as mobilizar para um perigo iminente, representa, muitas vezes, o crente. O mais natural é ser-se não crente, ver tudo e compreender tudo com os olhos da carne. Falar de realidades que estão para lá do palpável e do verificável, por mais claras que possam ser a quem as professa, é estar a incendiar o rastilho da irrisão e da comédia. Quem já não se sentiu impotente e incompreendido diante de ateus e agnósticos, quando tenta falar da razoabilidade e experiência da sua fé? Por mais que se escolham as melhores palavras para expressar que se encontrou Deus e que se vê para lá das evidências, do outro lado vem o sorriso jocoso, o cinismo e a indiferença. Quantos mais argumentos o crente usa, mais cresce a convicção no seu interlocutor de que está dado a desvarios e alucinações. E num mundo marcadamente racionalista e impregnado de cientismo, como é o mundo de hoje, que faz do laboratório a sede da verdade e promove a negação da fé como sinal de progresso, o crente parece alguém que ainda quer viver nos velhos tempos do obscurantismo e que ainda não atingiu a maturidade do pensamento. Mas calma, meus amigos. O incêndio era mesmo verdade. O crente não tem todas as provas na mão de que Deus existe, mas o não crente também não tem todas as provas de que Ele não existe.

Por outro lado, porque é que o palhaço não se lembrou de retirar a maquilhagem para que as pessoas pudessem acreditar nele? Se tem tirado a maquilhagem pelo caminho, possivelmente teria mobilizado algumas pessoas para o incêndio. Pulula por aí o anseio de um cristianismo desmaquilhado ou que seja maleável às nossas maquilhagens, ou até diria, descaracterizado, destituído do verdadeiro espírito do Evangelho e sem exigência e compromisso. Não faltam pessoas, e são muitas, que afirmam que até seriam católicas e fariam parte da Igreja se esta não fosse contra certas e determinadas coisas, ligadas à vida humana e à moral. Nem mais, meus amigos. E que tal a Igreja não ser contra nada e não se manifestar contrária às caricaturas de amor e aos atropelos indignos em relação à dignidade da pessoa humana, metendo o Evangelho na gaveta? Não seria tão bom termos uma Igreja que na sua moral permitisse o aborto, a eutanásia, o uso de todo o tipo de contraceptivos, o divórcio, uma educação sexual libertina, mancebias e o casamento homossexual? Mas que Igreja seria, afinal? Que cristianismo viveríamos? Seria tudo, menos cristianismo. E o cristianismo é isto e ponto final. A Igreja está no mundo para viver e testemunhar o projecto de Deus para toda a humanidade, com toda a sua exigência e verdade, projecto esse que atingiu a sua revelação máxima e o seu ponto alto em Jesus Cristo. A Igreja tem que saber falar aos homens de todos os tempos, mas isso não quer dizer que tenha que se conformar com as mentalidades, conveniências e modas de cada tempo, sob pena de estar a trair a sua missão, ficando sujeita ao arbítrio do vento. Ser cristão é assumir a integridade do Evangelho, sem andar atrás de adoçamentos e de vivências adulteradas. Não vá S. Paulo acusar-nos de procedermos como inimigos da cruz de Cristo.

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