01.10.09
No século V a.C., Péricles, uma das grandes figuras da história grega, pronunciou um dos discursos mais marcantes da cultura política ocidental, na altura, proferido em homenagem aos atenienses mortos no primeiro ano de guerra contra Esparta. Num ambiente de pesar, Péricles expôs os valores que configuravam e consolidavam a democracia ateniense (e que devem configurar todas as democracias): "O nosso sistema político não compete com instituições que estão noutros locais implantadas pela força. Nós não copiamos os nossos vizinhos, mas tentamos ser um exemplo. A nossa administração favorece a maioria em vez da minoria: é por isso que é chamada uma democracia. As leis dão justiça para todos de igual modo, nas suas disputas privadas, mas não ignoramos a demonstração da excelência. Quando um cidadão se distingue, então será chamado para servir o estado, em detrimento de outros, não devido a privilégios, mas como um prémio para o mérito; e a pobreza não é obstáculo para tal... A liberdade que apreciamos estende-se também à nossa vida particular; não desconfiamos uns dos outros, e não aborrecemos o nosso vizinho se ele escolher seguir o seu próprio caminho. ... Mas esta liberdade não faz de nós seres sem lei. Somos educados para respeitar os magistrados e as leis, e a nunca esquecer que devemos proteger os feridos. E somos também ensinados a observar aquelas leis que não estão escritas cuja sanção está apenas na sensação universal do que está correcto”.
Maioria, justiça para todos e mérito. São os valores que Péricles destaca. Sem dúvida, são os grandes pilares de uma democracia. Há um que está, actualmente, posto em causa, na nossa jovem democracia: uma justiça eficaz e para todos. Está mais que visto que o funcionamento da nossa justiça anda muito longe do razoável para um país que se quer moderno e evoluído. Não está em causa a competência dos juízes e outros intervenientes, mas sim o acesso à justiça, o entrosamento do sistema e a inter-acção com os cidadãos. Uma democracia que não esteja revestida de uma justiça séria, límpida, competente, imparcial e razoavelmente célere, será sempre uma democracia adiada e de menoridade. Se há algo que consideramos inquestionável e inegociável, sob pena de estar em causa a coesão e a confiança do país, é que há uma lei para todos e que todos são chamados a responder pelo seu incumprimento e que são dadas as mesmas condições a todos de acederem à justiça para verem respeitados os seus direitos.
É lamentável que muitas pessoas, em Portugal, deixem de poder recorrer à justiça para poderem sanar imbróglios em matérias ou situações em que estão gravemente lesadas, porque acham que meter-se na justiça é meter-se num “monte de trabalhos” e que o que ganham não dá para aventuras jurídicas. É por demais evidente que há uma justiça para ricos e uma justiça para pobres e que não são oferecidas as mesmas condições a todos, o que é gravíssimo e inaceitável. Promovem-se, assim, cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. Como é profundamente perturbante ver a desfilada de transgressores da lei a saírem impávidos e serenos dos tribunais, sabendo todos que somam sentenças a seu favor porque têm dinheiro para sendeirar nas mais altas instâncias e para recorrerem aos mais doutos em códigos jurídicos e argutos na desmontagem de delitos. É fundamental que a justiça recupere a sua eficácia, sob pena do estado de direito não passar de uma miragem.
Este diagnóstico está feito há muito tempo. O cidadão comum acredita pouco na justiça e está profundamente desiludido com o seu funcionamento. Todos os dias não faltam motivos para crescer o sentimento de impunidade. Não se põe na ordem faltosos e delinquentes. O medo, paulatinamente, está regressar, assim como o jagunço (indivíduo contratado para dar umas pauladas), que corta leviandades pela raiz e resolve os problemas antes dos tribunais, com o maior dos desaforos. Alguém sente vontade política em reformar a justiça? É incompreensível e intrigante a atenção que os partidos políticos dão ao funcionamento da justiça. Basta ler os programas eleitorais. É preciso reformar, sim senhor, mas é tudo muito vago. Porque será? De que é que os partidos têm medo? Cá para mim, esta justiça confusa, monacal, cara, lenta, serve a muita gente e a muitos interesses (que o digam muitos políticos e empresários).
Oxalá tivéssemos a mesma desenvoltura para reformar a justiça como estamos a ter no combate à gripe A, porque a justiça já está gripada há muito tempo. Será que ainda não percebemos que sem uma justiça sólida e ágil dificilmente seremos um país desenvolvido e capacitado para integrar o pelotão da frente da União Europeia?