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minhas notas

11.02.21

Se há dom e privilégio que nos distingue, enquanto seres humanos, do restante mundo animal é a liberdade. Não somos livres em tudo, mas temos liberdade para ser e optar, temos a faculdade de nos podermos construir a nós mesmos e darmos o rumo que quisermos à vida. Não estamos programados e formatados por um instinto, mas temos a liberdade de escolher, conduzidos por uma inteligência criativa que se entende a si mesma e o mundo à sua volta. O ser humano só o é na sua plenitude se pode dispor de si mesmo e da sua vida e vivê-la na fidelidade à sua consciência e às suas convicções. Ser homem e ser mulher implica sempre ser livre e viver em liberdade. 

Se eu gosto de ser livre, facilmente percebo que o outro que tem a mesma essência e a mesma dignidade que eu, também tem direito a ser livre. Isso implica uma aprendizagem para que as duas liberdades não choquem e não se anulem uma à outra, mas se respeitem, aprendam a conviver uma com a outra. Para dizer isto, inventámos uma frase: a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro. Contudo, é uma frase que não está correta e é uma contradição. É um disparate. A minha liberdade não tem de acabar para o outro ser livre. Como é que duas pessoas podem construir uma relação se apenas uma pode ser livre ou se as duas liberdades se anulam uma à outra? Estranha liberdade em que uma tem de se anular para existir a outra ou para uma pessoa ser livre a outra deixa de o ser. O outro seria então um limite e um estorvo à minha liberdade. Em parte, lá iríamos ter ao filósofo existencialista Sartre, que escreveu numa peça teatral que os outros são o inferno. Neste caso, porque o outro corta ou diminui a minha liberdade.

Na verdade, a minha liberdade não termina quando começa a liberdade do outro ou dos outros. Continuo sempre a ser livre e tenho de continuar a ser sempre livre, no exercício de uma liberdade responsável. O correto é dizer-se a minha liberdade acolhe, respeita a liberdade dos outros. O que acaba é a minha libertinagem, porque eu não posso fazer tudo o que quero sem respeito pelos outros. A libertinagem tem de caminhar para a liberdade, que é escolher sempre o que é correto que se faça e deve ser feito e não o que é sugerido pela vontade selvagem e irresponsável que possa habitar o ser humano. A nossa liberdade só acaba quando não é liberdade e se transforma em libertinagem. Quem a pratica é censurado e afastado da relação com os outros ou é desprezado.

11.02.21

Anda por aí agora a moda de fazer-se concursos de tudo e mais alguma coisa. Vá-se lá saber porquê, tudo passou a ser votado para o melhor de não sei o quê, como se haja o melhor, quando tudo é original e tudo é diferente. E basta que os habitantes de uma região votem em massa e ganhem o concurso e ficam com o rótulo da melhor proeza ou maravilha cultural. A cultura não é feita para concursos e parece-me muito pouco sensato andar a promover competições culturais. A cultura é tão rica e variada, tão heterogénea e singular, tão multifacetada e colorida, tão diversa e única para caber num concurso. É impensável colocar-se a concurso coisas que são únicas e originais. De certeza que este marketing anda a servir alguns interesses, para inglês ver, que facilmente identificamos, e duvido que estejam a prestar um bom serviço à cultura e à identidade portuguesa. Faz-se muito show televisivo, mas gostaria de saber o que é que se vai continuar a fazer pelas coisas que são levadas a concurso, muitas delas já com muito poucos guardiões e aprendizes.

Lá se inventou também o concurso das sete maravilhas da cultura popular, sendo levada a concurso a sexta-feira 13, noite das bruxas, que se realiza em Montalegre. Tenho todo o respeito pelas pessoas que neste momento lutam pela sobrevivência do interior e da sua economia, o que cada vez mais é uma missão hercúlea, e o que nos está a custar ver crescer de forma galopante o despovoamento, o empobrecimento e o abandono das nossas terras, tenho um enorme respeito pelo Pe. Fontes, que gosta de partilhar a sua boa disposição com os outros, mas vi com enorme surpresa a sexta-feira 13 ser integrada no concurso das sete maravilhas da cultura popular. Vejam estas minhas palavras como uma crítica construtiva. Sejamos claros: a sexta-feira 13 não tem nada de Barroso e de Montalegre, não vejo ali cultura nenhuma. A cultura exige um cultivar que o tempo consagra no povo ou num povo. O que eu vejo no dia do evento é um circo de uma amálgama de coisas dispersas, uma invasão de pessoas para as mais variadas participações, de que sobra fumaça na aurora do dia seguinte e se fosse só fumaça. Não vejo contar uma história de Barroso, não ouvimos um autor de Barroso, não se vê uma forte participação da tradição genuína do povo de Barroso e do próprio povo de Barroso, que se deita cedo, porque no dia seguinte tem de trabalhar, não se celebra Barroso, celebra-se uma festa de rua, como tantas outras, num cenário único, com muito convívio e ruído, com muitos enfeites e figuras, com um sortido de personagens fantasmagóricas, mas que de cultura genuína pouco tem. O evento é recente e até a ladainha que o Pe. Fontes profere no momento da queimada, com a facécia que todos lhe reconhecemos, é de origem galega. Vender-se a ideia de que uma grande noite de convívio e diversão é uma maravilha da cultura popular é uma traição à cultura popular. Se me falarem de um cancioneiro do povo, de uma dança folclórica única, de uma forma de cantar e de cantares populares que fazem parte da história e atravessaram gerações, de uma tradição que expresse verdadeiramente o sentir do povo, de usos e costumes que o povo muita preza e que expressam a alma e a identidade de um povo ou de uma região e por aí fora, sabemos que estamos a navegar nas águas da verdadeira cultura popular.

Inserir a sexta-feira 13 na categoria das festas de rua ou das meras festas populares de diversão poderá ter algum sentido. E teve algum sentido comparar a sexta-feira 13 com as grandes romarias religiosas do país? Já o disse mais do que uma vez: a imagem das bruxas não tem nada a ver com Barroso e quem lhe tenta colar este rótulo presta um mau serviço a Barroso. O nosso povo sempre acreditou em maus olhados, mezinhas, poderes obscuros, curandice, superstição, mas não foi só em Montalegre, foi em todo o lado. Não há nenhum substrato cultural singular em Barroso ligado ao bruxedo para se justificar a sexta-feira 13 e não faz qualquer sentido dizer-se que a sexta-feira 13 é expressão da ancestral cultura de Barroso. Tivemos de inventar estórias e contos mágicos para passarmos os nossos grandes serões hibernais, o que se fez e faz em muitos países e culturas. Quem vai ouvindo as pessoas pelas aldeias de Barroso, não deixam de manifestar estranheza pelo aparecimento do evento com o nome que tem e consideram uma bizantinice sem perdão ligá-la à verdadeira cultura do povo de Barroso. Não digo que o evento não se continue a realizar, oferece diversão, tanto melhor, e, segundo dizem, tem uma grande importância para a viabilidade económica de Barroso, mas chamemos-lhe o nome certo, não exageremos nas suas considerações e tenhamos mais respeito pela cultura de Barroso e da cultura popular em geral.

11.02.21

Genoveva do Espírito Santo (nome fictício) é uma figura conhecida do bairro da Boa Fama. Já é viúva há dezena e meia de anos, nunca mais se deixou enredar por amores («tive um e chegou-me»), anda sempre bem vestida e perfumada, com um vistoso fio de ouro no pescoço, onde exibe a figura do grande amor da sua vida, que visita diariamente no cemitério, homenageando-o com algumas orações e sentidas lágrimas. Quando o padre Anacleto vem ao bairro celebrar a missa, ela não falha: apresenta a sua intenção e tem sempre terços e outros objetos religiosos para o senhor padre benzer. Já se lhe ouviu dizer muitas vezes, altiva e convicta: «sabe, padre Anacleto, a minha família sempre foi muito religiosa. Como não podia deixar de ser, eu também sou.» Não falha uma missa, festa ou romaria.

Maria Antonieta da Purificação (nome fictício) é uma boa mãe de família e uma avó carinhosa. Não há maior alegria para ela do que ver os netos irrequietos à volta da mesa e ela a contemplá-los embevecida, com um sorriso de orelha a orelha, como um ourives contempla as suas melhores joias. Educou os seus três filhos a ir à missa todos os Domingos e à noite rezava o terço com eles, na companhia do marido, o que tenta fazer com os netos, mas com pouco sucesso. Tem um altar na sala de estar, onde vive as suas devoções e alimenta a sua piedade, com uma bela cruz de prata e várias imagens de santos, quadros com rezas, com uma vela sempre a arder. Todas as manhãs e noites passa por ali, para consolo da sua alma. Não há ano que não faça uma promessa, para ter a benevolência de Deus e dos santos. Está sempre prestável para ajudar o padre Agripino, a quem assegurou: «A minha mãe era uma mulher muito religiosa. E eu também gosto de ser, gosto da Igreja, e morrerei como mulher de Igreja. Não consigo viver sem fé».

De certeza que conheceremos pessoas assim. Não têm nada de errado. Conhecemos muito bem esta educação e cultura católicas, que foram o nosso berço. E muito temos a agradecer. Não tenho qualquer dúvida de que serão pessoas de verdadeira fé, boas e devotas, que procuram ser fiéis à tradição e aos costumes católicos, e que tentam pautar a vida pela boa educação religiosa católica que tiveram. O problema é que, muitas vezes, somos educados a ser muito religiosos e pouco cristãos, o que não pode acontecer. É um salto ou um passo fundamental que muitos cristãos católicos precisam de dar. Há por aí religião a mais, com muitos atos e práticas religiosas ancestrais, embrulhadas com muita superstição e espírito interesseiro, e cristianismo a menos. E não faltam «católicos», que ignoram o que é ser cristão e viver como tal. Ser um bom cristão católico não é ser só fiel a regras, práticas e costumes que a Igreja propõe, férreo cumpridor de ritos e cerimónias e aficionado de devoções e rezas, mas pautar a vida pelos critérios, valores e sentimentos de Jesus Cristo, pela fidelidade ao Evangelho. Corremos o risco de se cumprir em nós o que o padre António Vieira já alertava no seu tempo, «sermos católicos de dogmas, mas hereges de mandamentos», ou seja, acreditar numa série de verdades e praticar uma certa ritualidade e disciplina sacramental, mas depois viver ao contrário daquilo em que se acredita e se afirma diante de Deus, separando-se o culto da vida e a vida do culto, a fé e a doutrina da ética e da moral que devemos praticar todos os dias. É uma contradição inaceitável, que Jesus condenou severamente no seu tempo.

O divórcio entre o culto a Deus (ser religioso) e a vida (ser mesmo cristão) chega a atingir o escândalo, como descreve o escritor católico, João da Silva Gama: «Temos muito povo cristão que ainda está por evangelizar: para ele, a religiosidade só funciona em certas alturas da vida, como o nascimento, casamento e missa aos Domingos. Nos intervalos, o tempo mais importante da vida, há cristãos que chegam a cometer as mais incríveis barbaridades: caluniar e difamar sistematicamente o vizinho, fazer justiça por mãos próprias, à enxada ou linchamento, só porque lhe tiraram um palmo de pinhal ou da horta. No dia seguinte, vemo-los na missa com uma devoção de estarrecer.»

Não temos de ser muito religiosos, enquanto meros consumidores e praticantes de religião, trazendo para a nossa relação com Deus os mesmos hábitos, práticas, ritos, medos e superstições que todas as religiões sugerem ou impõem aos seus sequazes, ou o «animal religioso», que habita o ser humano, dita. Alguns autores católicos até defendem que Jesus Cristo não quis fundar uma religião, tal como é conhecida, quis fundar um movimento de discípulos, que perpetuaria no mundo a sua forma de estar e de viver, contruindo e testemunhando o Reino de Deus, de acordo com os princípios e valores do Evangelho. Religiosizar a fé cristã talvez não tenha sido um bom caminho. O que temos de ser mesmo é cristãos de verdade, imbuídos do Evangelho na mentalidade e no coração, com uma postura digna de cristãos nas relações humanas, na família, no trabalho, nos negócios e restantes âmbitos da vida humana e social, não descurando, certamente, a vida litúrgica, a oração e o encontro com os outros, mas viver só isto, sem a fidelidade diária a Cristo e ao Evangelho, é uma hipocrisia inaceitável para um cristão católico.

11.02.21

No dia 2 de agosto de 2016, o Papa Francisco nomeou uma comissão para estudar o papel da mulher na Igreja, mais concretamente para estudar a existência do diaconado feminino na história da Igreja e a sua reativação na vida eclesial, comissão composta por seis homens e seis mulheres, presidida pelo secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, Luis Francisco Ladarria Ferrer. Tratou-se de pôr em prática o que o Papa já tinha manifestado na sua exortação apostólica «A Alegria do Evangelho», de 2013, pedindo abertura e uma séria reflexão para se dar mais protagonismo às mulheres, leigas e consagradas, nos processos de decisão na Igreja e na pregação. Se repararem bem, tem sido um apelo sempre presente na comunicação e na agenda do Papa.

Aproveitando a investigação já realizada e o mediatismo do tema, a Universidade Católica em Lisboa promoveu no dia 10 de abril a apresentação de um livro sobre a historicidade do diaconado feminino na Igreja e uma conferência sobre a mesma temática, com a presença de dois membros da comissão que o Papa nomeou.  A investigação não deixa dúvidas: desde os inícios da história da Igreja até ao século 12 existiram diaconisas na Igreja. Quem lê as cartas de S. Paulo, nota que o apóstolo refere várias vezes nomes de mulheres que o ajudavam na vida das comunidades, chegando a referir que «trabalhavam juntos». Predominou uma grande liberdade e complementaridade neste campo até ao século 12. A reforma gregoriana e a separação da Igreja em 1054, entre Oriente e Ocidente, conduziu Roma a uma organização racional das leis e do direito canónico, excluindo o passado. A mulher foi remetida para um papel secundário e perdeu protagonismo na vida da Igreja.

Na opinião dos membros da comissão, chegou o tempo de a Igreja se reencontrar com o seu passado e restabelecer o diaconado feminino, um bem precioso de que a Igreja prescindiu. Como diz a coautora do livro, Phyllis Zagano, «esta é a oportunidade de a Igreja dizer que acredita no que ensina e que a mulher é imagem e semelhança de Deus». O Concílio Vaticano II deu um passo importante, na década de sessenta, quando restaurou o diaconado permanente. Seria bom, talvez agora, torná-lo acessível também para as mulheres.

Como sabemos, o Sacramento da Ordem tem três graus: diaconado, sacerdócio e episcopado, só para homens, e os dois últimos só para celibatários. O diácono, palavra de origem grega que significa servidor, que podemos identificar nas celebrações com a estola cruzada no peito, ao lado do bispo ou do sacerdote, é o ministério eclesial que tem por missão conduzir atividades caritativas, exercer funções litúrgicas, como anunciar a Palavra de Deus e dedicar-se à pregação, assistir o bispo e o padre nas missas, administrar o Batismo, presidir a casamentos e funerais, entre outras funções eclesiais. Só não pode celebrar a Eucaristia ou Missa e o Sacramento da Penitência, ações específicas e exclusivas do padre e do bispo.

Já aqui referi que Jesus Cristo, no seu tempo, contribuiu para a promoção da mulher. Falava com elas abertamente na praça pública, teve discípulas e partilhava refeições em casa de amigas, o que para o seu tempo era subversivo. Não vejo que dom a menos tenham do que os homens para não poderem ter um papel mais interveniente e decisivo na vida da Igreja. São, atualmente, a força da Igreja: dão catequese na sua maioria, são zeladoras, integram em grande número os coros paroquiais, presidem ao terço, fazem parte das comissões, entre tantos outros serviços. Não há razões válidas que justifiquem o não acesso ao primeiro grau do Sacramento da Ordem. Faz parte do elementar respeito pela dignidade da mulher, como afirma Phyllis Zagano: «Não preciso tornar o mundo todo cristão, mas gostaria de mostrar ao mundo que as mulheres são valiosas. Em particular para os crentes em Deus, que as mulheres são valiosas, são preciosas, não são um bem para possuir, não servem apenas para cozinhar e limpar. É muito importante fazer estas coisas, mas as mulheres têm um cérebro. E as mulheres são pessoas, humanas, totalmente humanas». E perfeitamente competentes para exercerem o diaconado, digo eu.

11.02.21

Já se pergunta nos ambientes eclesiais se muitos católicos voltarão à Igreja depois da pandemia. Já nem falo daqueles que desconfiam de que o vírus já cá anda há muitos anos e abandonaram as celebrações eclesiais há muitos anos. Quando as igrejas reabriram, terão sido poucas as que esgotaram a lotação em conformidade com as regras da pandemia. Vale a pena lembrar que muitas pessoas foram dispensadas de ir à Igreja, vivemos em regiões de grande envelhecimento e temos muita gente doente. Mas mesmo assim, sobram muitas pessoas que poderiam ir e não vão.

Sou levado a crer que os cristãos que habitualmente participavam e participam na vida da Igreja o fazem por convicção, vão à Igreja por verdadeira fé e que sabem compreender os tempos excecionais que estamos a viver. Se assim não for, que pobres cristãos temos sido. O que deve motivar um cristão a participar na vida da Igreja é o amor a Deus e aos outros, é o fascínio por Jesus Cristo e pelo seu Reino, é a alegria de ser e pertencer à Igreja, é o encanto pela fé. Não é o cumprimento formal de obrigações e preceitos, ou a repetição fria de hábitos que dão sentido à vivência da fé cristã. Repito mais uma vez, se assim é, que pobres cristãos temos sido. Não é por agora se quebrarem os hábitos e os dinamismos das nossas rotinas que vamos abandonar a nossa participação na vida da Igreja. Se assim acontecer, debelada a pandemia, teremos que concluir que estamos ainda no estado da infantilidade cristã. Andamos a reboque da cultura em que nascemos e dos costumes que assimilámos, mas, fora isso, não sabemos viver a fé de uma forma madura e pessoal, o que é um sintoma de grande enfermidade cristã. A ver vamos. Talvez venham mais ao de cima os motivos banais e fúteis porque muitas pessoas vão à Igreja. E se se der uma filtragem e uma purificação destes motivos, a Igreja não ficará a perder nada. Que muitos cristãos praticantes não deixem de refletir seriamente nestes dias o que tem significado a liturgia nas suas vidas e porque razão vão à Igreja. Será que é pelas verdadeiras razões? Quem estiver focado e fascinado por Cristo, duvido muito que abandone a vida da Igreja.

Sem qualquer intenção de censura ou julgamento, quando os cristãos voltaram às celebrações litúrgicas, reparei que a maior urgência sentida era as missas pelos defuntos, receber a comunhão, cumprir o preceito dominical, dar sentido ao domingo, mas não vi ninguém a falar da comunidade e da necessidade de estar com os outros, de celebrar a vida e a fé com os outros, de quem se sentia profundas saudades. Talvez seja um sintoma de que fazemos pouca experiência de comunidade aos domingos e vivemos pouco em comunidade, como devia ser o mais normal e o mais condizente com as exigências da reta vivência da fé cristã.

Vejo muitas pessoas a terem saudade do rito da missa, mas não vejo muitas pessoas a manifestarem saudade pela comunidade, de viver um verdadeiro encontro com os outros irmãos na fé e de se comprometerem a viver e a partilhar a mesma vida. Há excesso de culto e preceitos e deficit de comunidade, o sentir os outros e crescer em unidade e serviço uns para com os outros. Talvez isto nos diga que ao domingo somos mais um conjunto de indivíduos que vão à missa comandado por hábitos ou até escrúpulos, do que uma verdadeira comunidade de irmãos que tem uma grande alegria de estar junta e celebrar, e talvez diga muito da frieza que alimentamos nas nossas celebrações dominicais. Fazemos uma experiência pobre de comunidade.

Falta-nos a noção de que a missa também é um encontro com os outros, é uma comunidade, de que faço parte, que se alimenta e celebra, e não deveríamos achar normal que basta ver a missa pela televisão ou ouvir pela rádio, já nem falando dos que se consideram cristãos sem participar na vida da comunidade. E falta-nos esta noção porque na vida de todos os dias não vivemos em comunidade, vivemos muito virados só para a família e para o nosso grupo de amigos, não vivemos de verdade uns para os outros, para todos e para cada um. É uma dimensão que tem de ser seriamente repensada em muitas comunidades cristãs. Sem comunidade e em comunidade não há cristianismo de verdade.

11.02.21

Nunca foi fácil ser velho. Alguns chamam-lhe o inverno da vida. É e será sempre uma experiência perturbadora para a pessoa humana confrontar-se com o definhamento das suas capacidades psíquicas, intelectuais e físicas e voltar a um tempo de dependência próprio da infância. É penoso ver os sentidos a claudicarem e a arrastarem-nos para uma dolorosa perda de contacto com o mundo, um corpo que antes tinha uma admirável elasticidade para saltar penedos e agora lança sinais de alerta de todos os lados. Mas nada disto é surpreendente, já todos sabemos que temos um princípio, um meio e um fim. O melhor caminho a seguir é reconciliarmo-nos com a vida e tornarmo-nos aprendizes da arte de envelhecer. E ainda bem que temos alguns exemplos inspiradores à nossa volta. Não deixar imperar a visão capitalista e utilitária da vida, como se o ser humano só valha pelo que trabalha e produz.

Se o tempo da velhice já é por si o que é, também é verdade que a família e a sociedade têm a responsabilidade de o tornar mais saudável ou mais espinhoso. E facilmente podemos notar, atualmente, que não estamos a fazer tudo, como temos o dever de fazer, para que os mais velhos tenham uma velhice proveitosa e digna, sejam valorizados e apreciados, amados e estimados, muito por culpa de um modo de vida egoísta e comodista em que vivemos, com agendas individualistas e hedonistas, onde o cuidar dos outros e viver para os outros não têm espaço, onde a família está a deixar cair a sagrada tradição de todos olharem uns pelos outros até ao normal fim da vida. O esquecimento, a solidão, o abandono estão a ser a triste sina de um bom número de velhos. Na Ásia e em muitas culturas africanas, há um respeito venerável e abissal pelos mais velhos das famílias e da comunidade, na Europa, sede de progressos civilizacionais e dos direitos humanos, condenamos os velhos ao desprezo e à irrelevância social, sem o mínimo respeito pelo que lutaram e pela fina sabedoria que carregam.

Temos de mudar de atitude para com os mais velhos, que nos dão horas leves de prazer a ouvi-los contar as histórias da vida e nos oferecem sal para darmos equilíbrio a tanta imprudência e precipitação que nos comandam. Um crime civilizacional que estamos a cometer atualmente é separar as gerações, os netos passam pouco tempo e convivem pouco tempo com os avós, tirando, claro, as muitas felizes situações em que isso ainda acontece, os mais novos não sorvem a memória, a experiência e a sabedoria dos mais velhos. É uma perda irreparável para a consistência e a harmonia da sociedade e das famílias os mais novos não absorverem o saber valioso dos mais velhos, sobretudo num tempo que dá a primazia à formação tecnológica, científica e técnica, mas onde faltam de forma gritante a educação básica, os valores humanos, sociais e espirituais. Dizia há dias a escritora Alice Vieira: «Os avós ensinam coisas que os pais não ensinam» e o Papa Francisco escreveu num tweet: «Onde não há cuidado com os idosos, não há futuro para os jovens». E a Comissão Episcopal do Laicado e Família não pode deixar de concluir: «Os avós são um tesouro. Neste tempo que vivemos, precisamos de o dizer de forma clara, de o defender de forma assertiva. E os tesouros são protegidos, tocados com cuidado e admiração. Uma sociedade que não protege, não cuida, não admira os mais velhos, está condenada ao fracasso».

Há que fomentar três atitudes fundamentais para com os mais velhos: em primeiro lugar, respeito profundo, por serem pessoas humanas com a mesma dignidade que as outras, a idade não diminui a dignidade, e pela sua caminhada de vida; depois admiração, pelo muito que trabalharam e lutaram pela família, pela terra ou pela sociedade; por fim, valorização da sua memória e experiência de vida, tesouros imprescindíveis para o caldeamento e enriquecimento da vida, dando-lhes mais importância e intervenção na vida familiar e social, na vivência de uma velhice ativa e positiva, válida e fecunda.  

11.02.21

Tenho o maior apreço pelos jovens, admiro a sua rebeldia, a sua criatividade e vivacidade, a sua vontade de querer mudar e transformar o mundo, de quebrar preconceitos obsoletos e mofentos, questionar regras e costumes carcomidos e desajustados, e tenho, sobretudo, como certamente todos terão, muito respeito por eles, porque serão os futuros líderes da sociedade, e só Deus sabe como me custa fazer-lhes algumas críticas, que considero, no entanto,  construtivas, mas vou ter de o fazer. De eleição para eleição não estou a gostar de saber que a faixa etária mais abstencionista é a juventude. E as explicações ou teses sobre o fenómeno que são avançadas não convencem e não têm sentido. E, possivelmente, estão a incorrer num indigno ato de ingratidão para com o país, a família e os muitos honrosos antepassados, que lhes deixaram uma herança admirável. Poucas gerações tiveram o desafogo, o bem-estar, uma qualidade de vida, um nível de riqueza, as regalias e as benesses que as gerações atuais estão a ter. Deveriam estar muito agradecidas pelo mundo que lhes foi dado a viver. Mas a resposta dos jovens não tem sido a mais correta, alinhando pelo fácil falar mal de um tempo e de um mundo que lhes dá quase tudo de mão beijada.  

Vejamos algumas coisas. Nascemos num país livre, onde cada pessoa humana pode construir livremente a sua vida, no usufruto dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres para com a comunidade e para com os outros cidadãos. Há liberdade de consciência, de religião, de expressão e tantas outras fundamentais para a realização humana. Cada um pode ser e viver como quer, no respeito pela lei e pelos outros, o que noutros tempos foi negado a muitas pessoas. E o quanto não é bom vivermos a vida sem termos a sombra alucinante de um fantasma que queira conduzir, espiar, censurar e perturbar a vida dos outros! A liberdade e a democracia, que muitos corajosamente e abnegadamente conquistaram, não merecem que percamos quinze minutos para ir votar, participando na festa da democracia? Porque, de facto, a democracia é a festa da sã discussão, da partilha de ideias, da escuta de quem pensa diferente, do confronto intelectual de projetos e soluções para as dificuldades e problemas da sociedade. E a melhor solução é não participar na festa e fazer de conta que isto não é nada connosco? No futuro quem vai liderar a sociedade e as instituições políticas? 

Depois, lembro que nascemos num berço de ouro. Hoje, a maioria dos jovens não passa fome e não é miserável, pode estudar e pena, de facto, que ainda nem todos tenham um nível de vida digno e não possam estudar, mas se quereis que assim seja é a comprometer-se com a democracia e com a boa política e não virando-lhes as costas. Hoje um jovem já tem telemóveis de mil euros nas mãos com toda a facilidade do mundo, o que noutros tempos era uma miragem, e se o queriam, tinha de ser à custa do suor do seu trabalho. Muitos podem vestir-se com uma elegância ímpar. Poucas gerações tiveram os níveis de distração e diversão que as gerações atuais têm, onde não faltam atividades, desportos e ações para passar bem o tempo e aumentar a dopamina no cérebro. Muitos jovens têm o privilégio de participar em todos os festivais de verão, com grandes noitadas, à custa de muitos pais trabalhadores e abnegados, que se devotam, talvez exageradamente ou até erradamente, à convenção social de que não se pode faltar com nada aos filhos. Nunca se teve tanta facilidade para viajar e passar férias como hoje e veja-se o número de casais jovens que o fazem.

É caso para perguntarmos: de que é que se podem queixar as gerações atuais? Que mais é que é preciso? Certamente que ainda não é um mundo ideal e perfeito, pois não, mas é um mundo bom, que muitas gerações nunca tiveram, e é verdade que a cultura partidária e política desilude em muitos aspetos, mas sempre assim foi, com mais ou menos dimensão. A cultura laboral e empresarial ainda deixa muito a desejar, não há emprego para todos, pois não, mas só há uma forma de melhorar a situação: refletir, participar no debate de ideias e projetos, apontar soluções, ser um cidadão determinado, ativo e participativo, dar o corpo ao manifesto pelas boas causas sociais, envolver-se com audácia e criatividade no desbravar de novos caminhos e criação de estratégias para se melhorar a vida de todos, em vez de passarmos o tempo a reclamar de tudo e de todos ou a deixar sempre para alguém que nos venha sempre fazer a papa toda, sem exigir o nosso esforço e o nosso compromisso. Já é tempo de deixar o recreio.  

11.02.21

Jesus não quis fundar uma nova religião. Esta é uma tese sustentada, hoje, por muitos teólogos e estudiosos de religião. Muito pelo contrário. Jesus manifestou forte repugnância pela mentalidade religiosa e suas práticas e foi um crítico severo dos sacerdotes do seu tempo e seus comportamentos, revestidos de vaidade, poder, manipulação e sovinice. A religião não era libertadora e humanizadora, mas opressora, comandada por interesses humanos, e, sobretudo, por uma lógica de poder. O templo de Jerusalém, com todos os interesses que o rodeavam, mereceu sempre violentas censuras de Jesus. E não deixou de apontar uma alternativa: Ele mesmo e o seu Evangelho do Reino de Deus, uma outra forma de viver centrada em Deus e nos outros, sem as desnecessárias roupagens e os dispensáveis desvios da religião, que Ele repudiou. Colocamos então a pergunta: se assim foi, como é que se transformou o cristianismo numa religião?

A resposta é muito longa. Tal como o francês Alfred Loisy desabafou e lamentou, um dia, que «Jesus anunciou o Reino, mas o que veio foi a Igreja», quase também podemos concluir que Jesus propôs uma filosofia de vida e um movimento de discípulos guiados pelo Evangelho, e afinal o que veio foi uma nova religião, muitas vezes em profunda contradição com o Evangelho. Como diz o teólogo Jose Maria Castillo, «o maior erro da Igreja foi fundir e confundir a Religião com o Evangelho. Assim, como sabemos, o Evangelho é lido, na liturgia da Igreja, como um componente ou uma (breve) parte da Religião. E assim, com isso, o que se conquistou é viver uma contradição incessante, que se traduz e se materializa em milhares de contradições».

Seja com for, o caminho está feito e não é fácil agora formatar mais de dois mil anos da história da Igreja e da fé cristã e purifica-las de um dia para o outro da configuração e da mentalidade religiosa. Mas podemos e devemos fazê-lo dentro de nós e na nossa forma de viver a fé. Podemos e devemos fazer uma séria reflexão sobre o assunto e dispormo-nos a uma conversão permanente ao Evangelho. Reparo, como padre, que temos tendência para sermos muito religiosos e pouco cristãos, ou seja, gostamos de obedecer a todo um conjunto de práticas, costumes e tradições para nos sentirmos bem com Deus e conquistarmos a sua bênção e benevolência, de termos um sem número de santos que intercedam por nós e nos ajudem a vencer as necessidades e medos da vida, termos bênçãos para nos sentirmos seguros e confiantes (esta é a natureza radical da religião, em que, no fundo, nós estamos no centro), mas depois esquecemos os valores evangélicos mais básicos nas relações humanas, no trabalho, na família, nos negócios, no convívio social, na nossa moral pessoal, na nossa presença e intervenção no mundo, nas várias formas de o fazer.

Mais do que suspirarmos, durante a pandemia, pelo facto de não podermos cumprir os nossos deveres e preceitos religiosos, ou até as tradições que mecanicamente cumprimos, devemos é suspirar por ainda vivermos um cristianismo superficial, não termos no coração os sentimentos de cristo e por os seus valores evangélicos não estarem presentes nas nossas atitudes e no nosso testemunho diário de cristãos. Que testemunho os católicos deram durante a pandemia? Quem viu o sal, a luz e o fermento dos católicos? Tivemos e ainda vamos ter um tempo excecional para percebermos que temos de trocar uma certa religiosidade interesseira por uma vivência da fé verdadeiramente mais cristã e evangélica.

11.02.21

No século XVI, as caravelas e as naus de aventureiros europeus, sedentos de conquistas, de poder e de riqueza, com muitos missionários católicos nas fileiras, aportaram nas virgens praias dos povos americanos. Começaria um tempo de terror para os indefesos povos indígenas, um tempo de massacre e destruição, com uma aliança infame e diabólica entre a espada e a fé. Milhões de índios foram forçados a converter-se à fé cristã, estando em ação uma imparável evangelização musculada, imposta a todo o custo, sem tolerância possível. Centenas de templos foram demolidos e milhares de imagens do culto indígena foram quebradas e queimadas. Milhares de índios insubmissos, questionando a arrogância e o desplante dos invasores e usurpadores intrépidos, são barbaramente assassinados nas mãos destas milícias de Deus ou soldados de Deus. Para estes apóstolos do Novo Mundo, as regras eram simples: ou a conversão à fé cristã, ou a morte. Contextualizando-a no tempo, certamente, mas ficou assim escrita mais uma página negra da história da Igreja, uma missionação violenta e forçada em clara contradição com os valores que o Evangelho propõe. A Igreja não é a única culpada, há muitos aventureiros ambiciosos e sem escrúpulos, que têm de se sentar no banco dos réus, mas a Igreja permitiu uma cumplicidade, que não podia ter qualquer sustentação.

Para além de uma instrução cristã obrigatória, muitos índios foram transformados em escravos pelos colonizadores para auxiliarem na exploração mineira, sobretudo ouro, e nas plantações rentáveis, como a cana-de-açúcar ou o algodão. Durante décadas, face à rebelião que seria de esperar dos indígenas e com uma funesta prepotência, os intrusos europeus submeteram milhões de índios a um abominável período de punição e maus tratos, escravatura e extermínio. Não faltaram, contudo, vozes discordantes e corajosas dentro da Igreja, e homenagem lhes seja feita, a condenar esta maldição lançada sobre os povos indígenas americanos, como António de Montesinos e Bartolomeu de las Casas, o que lhes valeu vigilância apertada e alguns assomos da Inquisição.

A missionação indígena passaria depois por outras fases menos violentas e intolerantes, gerações indígenas posteriores olharam para a fé cristã com outros olhos, mas nunca mais se esqueceram os abusos e atrocidades que se cometeram nos inícios da descoberta e da conquista americana pelos europeus. Com sempre acontece, o tempo foi curando muitas feridas e veja-se, contudo, as voltas que a história dá: o mesmo território que noutros tempos foi olhado com suspeita e como antro do demónio, da incultura, do primitivismo humano e da incivilização, é agora olhado como o «laboratório» ideal para a Igreja pôr em prática algumas soluções ou experiências, que no futuro  poderão ser aplicadas a toda a Igreja Universal.  

Quando se realiza um novo sínodo na Igreja, alguns setores eclesiais e alguns meios de comunicação social caem sempre na esparrela de elevar a tal ponto as expectativas, que criam a sensação de que vai vir aí um vendaval de mudanças profundas na Igreja, o que nunca vai ser verdade. A Igreja muda muito lentamente e, por vezes, tem muito medo de mudar. Mas vai mudando algumas coisas, infelizmente em contramão face à obsessão mediática pelo sacerdócio feminino e pelo celibato, que já se percebeu há muito tempo que, pelo menos nos próximos tempos, são intransponíveis. A atitude do Papa Francisco tem sido admirável: não quer uma Igreja adormecida em velhos esquemas e soluções gastas, manda estudar e investigar, apela à criatividade pastoral, recomenda coragem para se enfrentar os problemas, quer uma Igreja próxima, em ação e comprometida com o mundo e com o futuro de sim mesma e da humanidade. Note-se que a possível ordenação de homens casados é só para os casos de muitos homens casados que já são diáconos na Igreja e não para todos os homens casados. Sairá em breve a exortação pós-sinodal do Papa Francisco, onde serão apontados caminhos para o futuro da Igreja. O respeito pela civilização indígena, a delapidação da Amazónia, o pecado ecológico, as alterações climáticas e possíveis avanços no Sacramento da Ordem estão a merecer uma atenção especial. A ver vamos.

11.02.21

Há duas ou três gerações de pais que estão a passar por uma situação ímpar: por um lado, e permitam-me usar uma palavra pesada, foram escravos dos pais, tiveram que se submeter em tudo aos pais, até, muitas vezes, no casamento. A soberana vontade dos pais ditou as suas opções de vida. Muitos desabafam hoje que foi um tremendo tempo de submissão e opressão. Não tiveram liberdade e autonomia para nada. Talvez querendo depois dar aos filhos o que eles não tiveram, e note-se a ironia da vida, acabaram depois por se tornar escravos da vontade dos filhos. Vemos assim, hoje, muitos pais completamente dóceis aos filhos, tudo fazendo para os criar num berço de ouro. Se antes os filhos tinham de fazer tudo para agradar aos pais, hoje os pais fazem tudo para agradar aos filhos. Podemos concluir que há duas ou três gerações que não tiveram tempo para gozar a vida. Tiverem de viver sempre para os outros. E não esperem por grande gratidão dos filhos: muitos vão colocá-los em lares, porque ao ritmo que vivemos poucos serão os filhos que terão tempo para os pais e poucos serão os que quererão cuidar dos pais.

A despenalização da eutanásia em Portugal ainda tem de percorrer uma maratona até ser aprovada. A mim interessa-me vê-la como um sintoma da mentalidade e do estilo de vida que estabelecemos na sociedade atual, estilo de vida muito questionável. Como muito bem diz Henrique Raposo no Expresso, «as pessoas não aceitam a tristeza como uma das partes da vida. Estamos a falar das mesmas pessoas que não estão disponíveis para o amor sacrificial que é criar filhos ou tomar conta de idosos. A sociedade que não quer ter filhos, porque as crianças dão trabalho, é a sociedade da eutanásia. A sociedade que abandona os velhos, porque os velhos dão trabalho, é a sociedade da eutanásia. A sociedade que preenche com os animais ‘humanizados’ estes vazios familiares, é a sociedade da eutanásia. A sociedade do lifestyle, é obviamente a sociedade da eutanásia, porque não tem tempo nem dinheiro para os velhos, para os doentes, para os mais frágeis».

Consagrámos e construímos a sociedade do bem-estar, decretámos o individualismo, vendemos a ideia de que a vida tem ser sempre prazenteira, fácil, cómoda, leve, ao sabor dos caprichos e conveniências de cada um, sem sacrifício, sem dor e sofrimento, livre de todos os empecilhos que possam perturbar a suprema satisfação do indivíduo, de modo que hoje ninguém está disponível para se sacrificar pelos outros e a ser solidário com quem quer que seja, a não ser que seja suave e momentâneo, a não ser por muito dinheiro, e fazemos tudo por esconder aqueles por quem temos o dever de nos sacrificar, porque muito fizeram por nós. A agudizar tudo isto, ainda temos a erosão da família, que desaprendeu a educar e a cuidar, e a desvalorização da vida no sofrimento e na velhice, de tal forma que muitos idosos sentem que são um estorvo e um peso para os outros, pairando sobre as suas apavoradas consciências a sensação de que já não estão aqui a fazer nada, e, pior ainda, já não valem nada. A vida vista pelo lado injusto e infame da utilidade e da eficácia. Já não produzes e não trabalhas, já não prestas.

O eclipse de Deus e a penúria de vida espiritual e religiosa deixam-nos petrificados e encalhados diante dos momentos mais duros e dramáticos da vida, como são o sofrimento e a morte. Como não os queremos viver nem entender, procuramos disfarçá-los ou escondê-los, e afastamos de nós os que estão a passar por eles. Reparem até na nossa educação: já poucos jovens ou crianças se veem nos velórios e nas visitas dos hospitais. Só queremos ver tacanhamente a vida pelo seu lado agradável, hedonista, engraçado, alegre e feliz, e camuflar o outro lado, que no mundo de hoje está proscrito, porque obriga a pensar a vida para lá das respostas simples e cómodas e das convicções e explicações superficiais reinantes.

Todos sabemos que existem momentos e situações de sofrimento dilacerantes na vida e aceito que a vida é muito complexa. Mas percebemos facilmente o berço humano e social que está a dar à luz a eutanásia e é um berço que me deixa profundamente inquieto e apreensivo, ciente do profundo retrocesso quanto à humanidade que deve imperar numa sociedade humana.  

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