29.03.16
No dia 19 de Fevereiro, na sua casa em Milão, morreu Umberto Eco, com 84 anos de idade, já há vários anos a lutar contra um cancro no pâncreas. Era um grande intelectual italiano, diria mundial, da velha guarda (segundo muitos, dos poucos que ainda existem), professor universitário, escritor, filósofo, ensaísta, romancista, linguista, crítico literário, investigador e leitor obstinado e insaciável, considerado pelo jornal italiano La Reppublica «o homem que sabia tudo». De carácter, era bem-humorado, irónico quanto baste, muitas vezes desconcertante, e polemista cativante, quase imbatível, pela sua capacidade argumentativa e reflexiva, mas, sobretudo, pela erudição. Religiosamente, tornou-se ateu, depois de ter concluído a sua tese de doutoramento sobre a estética de S. Tomás de Aquino, não culpando, no entanto, este grande pensador da Igreja. Mas não deixou de ter uma relação franca e cordial com algumas figuras da Igreja e era estudioso da Bíblia.
Morava num duplo apartamento na zona turística de Milão, servindo um deles de biblioteca e escritório, atafulhado com pelos menos 50 mil livros, segundo as suas contas. Demorava 6 a 8 anos a escrever os seus romances, fascinado pela conspiração delirante, pelo falso, o esotérico, o fantasmagórico, as ciências ocultas, as sociedades secretas, a magia, a bruxaria, o hipnotismo. Era um apaixonado pela estupidez humana, como gostava de afirmar a sorrir, com o charuto ou a cigarrilha apagada num canto da boca. Foi pena não ter estado em Montalegre, onde poderia ter recolhido dados interessantes para algumas páginas dos seus romances ou comido uma posta demoníaca feita por alguma bruxa malparida decrépita, acompanhada com queimada espantas espíritos, revisitando a obscura e malfadada Idade Média. Estava na lista, mas nunca recebeu, incompreensivelmente, o prémio nobel.
Recomendo-vos os seus romances. «O Nome da Rosa» foi o que o catapultou para a ribalta, logo no início da sua carreira literária, mas tem outros muitos bons. Muito boas são também as entrevistas que foi dando a revistas e jornais, de que me sirvo para deixar algumas frases marcantes da sua reflexão. Numa das suas últimas conferências, defendeu que a ética vai passar por maus tempos: «Qualquer doutrina moral consiste em apresentar um modelo de comportamento que cada um de nós deve tentar imitar. Daí a função modeladora do santo, do sábio, do guru, do herói. Agora, acontece que a televisão tende cada vez mais a apresentar como modelos pessoas normais, de tal modo que não há esforço nenhum em sermos iguais a eles. Nós queremos ser como eles porque eles receberam a graça de aparecer na televisão. Em muitos casos haverá pessoas que se tornam modelos não por causa do seu comportamento normal, mas antes por causa dos seus pecados espetaculares (desde que estes pecados lhes tenham dado visibilidade e sucesso). Assim, a Monica Lewinsky será um modelo mais forte (e mais fácil) do que a Florence Nightingale ou a Madre Teresa de Calcutá. Por isso mesmo o sucesso ético (a procura do Bem) não terá em breve qualquer ligação com a procura da virtude, mas apenas com a luta para ser visto." Reparem como isto é tão clarinho na sociedade em que vivemos.
Sobre a internet, defendeu que se verifica o fenómeno da imbecilização da sociedade, e afirmou sem papas na língua: «As redes sociais têm gerado uma invasão de imbecis, a quem dão o direito de falar a legiões de imbecis. Antes apenas falavam no bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade e agora têm o mesmo direito de falar que um prémio Nobel. É a invasão dos tolos». «A internet está cheia de falsidades e o grande problema é a capacidade de filtrar o que é verdade. E o excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar.» «É impossível pensar o futuro se não nos lembrarmos do passado. Da mesma forma, é impossível saltar para a frente se não se der alguns passos atrás. Um dos problemas da atual civilização - da civilização da internet - é a perda do passado.»
Quanto aos gostos e à superficialidade da sociedade atual, basta ver o sucesso que teve um livro e um filme sobre fantasias sexuais nos últimos tempos, afirmou: «Creio que quem enche os livros de sexo (e a vida, diria eu) é porque tem pouco na sua vida.»
Ultimamente, foi muito crítico com algum jornalismo errante que se pratica atualmente, que vive de falácias e de meias verdades, da manipulação histórica e noticiosa, de pendor sensacionalista, mexeriqueiro e difamatório. «Houve um homicídio em Lisboa, passados dois dias outro no Porto, no mesmo dia outro em Finisterra. Bem, é normal estatisticamente que haja homicídios. Mas colocá-los todos na mesma página, é dar uma notícia falsa, como se exista uma epidemia de homicídios, o que não é verdade».