22.03.14
As mensagens dos nossos bispos para a quaresma deste ano têm, mais ou menos, o mesmo conteúdo: salientam a espiritualidade e as práticas quaresmais e recomendam uma maior solicitude para com os pobres e para com os que sofrem, no seguimento da mensagem do Papa Francisco para a Quaresma. Certamente que assim teria de ser. Em primeiro lugar, convém lembrar o essencial. Mas fico sempre com a impressão de que se poderia ir mais longe. Já sabemos há muito tempo, embora não o pratiquemos devidamente, que um dos traços fundamentais de ser cristão é o amor aos outros, especialmente aos mais pobres, aos mais fracos, aos que não têm voz, nem lhes é reconhecida a dignidade de pessoas humanas ou de filhas de Deus, que são os eleitos de Deus. Amor aos outros que deve ser constante e continuamente aprofundado, sendo a quaresma um tempo favorável para isso. Mas já não chega só falar da solidariedade e da generosidade para com precisa, embora seja a primeiríssima atitude que temos de ter.
Nós, cristãos, atuamos muito sobre as consequências e os efeitos e somos excessivamente moderados a falar das causas e a apontar caminhos novos. Não podemos ser só a Igreja amiguinha dos pobres e deserdados e o compassivo bom samaritano que passa ao lado da cultura política, económica e social que está instalada. Também temos de ser a Igreja profética e interventiva, que testemunha com coragem e audácia um mundo novo e uma nova ordem, de acordo com o Reino de Deus e seus valores. Jesus não se limitou a acolher e a dar nova vida e nova esperança aos mais pobres e excluídos. Dirigiu-se a Jerusalém, onde estava instalado o poder que criava e alimentava injustiças e que esmagava e oprimia as pessoas do seu tempo. Esta tem de continuar a ser uma das posturas fundamentais da Igreja na terra dos homens, com ousadia e liberdade.
A miséria é uma questão complexa. Tem muitas causas. Resulta de muitas deficiências e abusos e de muitos desequilíbrios. Alguma dela também se poderia chamar perfeitamente preguiça. Mas boa parte da miséria resulta da indiferença de interesses instalados e de estruturas e poderes injustos, poderes que controlam a sociedade e que pouco ou nada se importam com o bem comum. É preciso denunciar intrepidamente os muitos caminhos errados que se escolhem, as ideologias que não promovem a pessoa humana e a sua realização humana, social e espiritual e que a viram contra si mesma e contra os outros, as opções que criam desigualdade e exclusão, os valores que rebaixam e degradam a pessoa humana, as omissões que fazem perdurar a desumanidade, as decisões e os conluios que beneficiam pequenos grupos em detrimento do bem de toda a sociedade. Temos pano para mangas nestes tempos núbios que atravessamos. Como Igreja, temos de estar junto dos pobres, mas também temos de ser libertadores e arautos de mudanças e de transformações.
O Papa Francisco, na sua mensagem para a quaresma, chama-nos atenção para as várias misérias: material, moral e espiritual. Habitualmente, só se dá enfoque à miséria material, o que nós chamamos a pobreza, embora miséria e pobreza não sejam a mesma coisa, como muito bem lembra o Papa. A miséria é viver destituído dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade. Pobreza é já ter isso e optar livremente por viver só com o necessário, centrando-se a vida na relação com Deus e com os outros. Os religiosos da Igreja fazem este voto de pobreza, que não deixa de ser também recomendado a todo o cristão, seguidor de Jesus Cristo. A miséria material tem de estar no centro das nossas prioridades e das nossas preocupações. Mas não menos importante, é a miséria moral e espiritual, que facilmente e dolorosamente reconhecemos na sociedade atual, fonte de muita insatisfação, desnorte, violência, alienação e depressão, enquanto falta de motivação e alegria de viver.
Nas palavras do Papa, a miséria moral «consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros – frequentemente jovem – se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspetivas de futuro, perderam a esperança». Vivemos num tempo de uma inquietante crise dos valores fundamentais, que dignificam e realizam a pessoa humana. Sem valores humanos e morais, a convivência humana torna-se irrealizável e deixa de existir aquela confiança essencial para as relações humanas e para que todo o projeto humano e social una esforços e dê frutos e sirva à realização de todos. Existem grandes lacunas na formação da consciência moral. Muitas pessoas vivem uma vida vazia, sem dimensão ética. E o mais grave é que parece que o próprio mal já não é questionado e quem o pratica tem mil justificações para o fazer, julgando que não tem de prestar contas a nada nem a ninguém, e não admitindo a falência do seu pensar e do seu agir, perdendo-se a noção de erro, de imoralidade e de pecado. Vivemos tempos lodacentos. Unida à miséria moral, anda a miséria espiritual, «que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos autossuficientes, vamos a caminho da falência. O único que verdadeiramente salva e liberta é Deus». Ainda não percebemos que, no meio desta embriaguez materialista, a maior das nossas misérias é vivermos uma vida sem Deus. Muitas pessoas vivem uma vida seca e pobre, sem interioridade e sem valores espirituais, uma vida sem seiva, que dificilmente descola da visão rasteira da vida, com os seus prazeres efémeros, e se torna plenamente humana. Sem valores espirituais, a vida não tem densidade e profundidade.
Dentro da miséria moral e espiritual, seria bom que nesta quaresma muitos cristãos católicos questionassem o seu «nem roubo, nem mato», que diz tudo e não diz nada e nos faz atores de um filme de ficção. Quem se lembrou de inventar tamanho disparate? A afirmação, que se ajusta muito à hipocrisia que gostamos de cultivar, encerra vários erros: reduz a vivência da fé ao legalismo minimalista; vê a vida pelo negativo e por aquilo que não se deve fazer e não pelo positivo e que se deve fazer; trata-se Deus como um juiz e não como um Pai que ama; promove um amor calculista e mesquinho com Deus e com os outros. Mente-se descaradamente, recorre-se à vingança, comete-se adultério, vive-se egoisticamente e indiferente às necessidades dos outros, difama-se e calunia-se com requinte e malvadez, é-se invejoso, cultivam-se ódios e rancores, recorre-se à corrupção, abusa-se do álcool e de drogas, é-se trapaceiro e explorador nos negócios, praticam-se falcatruas, desprezam-se os pais, aninham-se e alimentam-se maus desejos, não se tem civismo na rua e na estrada, falta-se ao trabalho e ao cumprimento do dever, traficam-se influências, exploram-se trabalhadores, serve-se a ganância e a avareza, despreza-se Deus e a Igreja, perseguem-se pessoas, projetam-se planos diabólicos, faz-se pouco dos outros e ainda temos a inconsciência e a leviandade para nos pormos de joelhos diante de Deus e dizer «nem roubo, nem mato»?