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minhas notas

21.10.13

Não sei se acompanharam a correspondência e o diálogo que o Papa Francisco e Eugenio Scalfari, cofundador e editor do Jornal italiano La Repubblica, não crente assumido, empreenderam nos últimos dias ou meses. Scalfari, depois de ler a última encíclica papal, Lumen Fidei, sobre a fé, resolveu questionar o Papa, em forma de carta aberta, sobre alguns temas relacionados com a fé e a laicidade, em dois artigos a 7 de Julho e 7 de Agosto, publicados no referido jornal. O Papa Francisco respondeu com uma carta, a 4 de Setembro, publicada no mesmo jornal. Posteriormente, encontraram-se no Vaticano para aprofundarem o diálogo e o conhecimento. Chegou o tempo, nas palavras do Papa Francisco, «de fazer um pedaço de estrada juntos».

Scalfari apresentou-se diante do Papa com uma identidade bem vincada: «sou um não crente que, há muitos anos, está interessado e fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José, judeu da estirpe de David. Eu tenho uma cultura iluminista e não busco a Deus. Penso que Deus é uma invenção consolatória e fascinante da mente dos homens.». Eis um não crente no seu estado puro, mas inquieto e fascinado pela figura e pelo Evangelho de Jesus Cristo, porta que permitiu o encontro e o diálogo dos dois, «aberto e sem preconceitos».

 

Não temos aqui espaço para abordarmos todos os temas tratados. Centrarei o meu enfoque na carta do Papa Francisco, que recomendo a todos os crentes. Há dois ou três aspectos que vale a pena sublinhar. Em primeiro lugar, o Papa Francisco explica a forma como chegou à fé e o que é a fé: «A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus: um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à minha existência; mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou possível pela comunidade de fé em que vivi e graças à qual encontrei o acesso ao entendimento da Sagrada Escritura, à vida nova que flui, como jorros de água, de Jesus através dos sacramentos, à fraternidade com todos e ao serviço dos pobres, verdadeira imagem do Senhor». A fé é a adesão a Jesus Cristo, na e com a Igreja. Dei por mim a pensar: quantos cristãos poderão dizer o que o Papa escreve? A nossa vivência cristã resultou de um encontro fulminante com Jesus Cristo? Será que Cristo incendiou de verdade o coração de muitos cristãos? Tenho muitas dúvidas. A fé entrou na vida de muitos cristãos como o ar entra nas casas quando se abrem as janelas, com a maior das naturalidades, sem grande questionamento e estremecimento, sem a mínima «inquietação», com o trabalho quase todo feito. Não foi preciso nenhum «encontro» especial e nenhuma busca, bastou seguir as pegadas de uma tradição e de uma cultura dita cristã. Não se tomou uma decisão pessoal, com a inteligência e o coração, fascinado pela mensagem e pela figura de Jesus Cristo, escondido por detrás das fórmulas catequéticas que mal se entendiam e que tinham de se decorar, ou por detrás de celebrações «a que se tinha a obrigação de ir», estranhas à vida, onde se deveria encontrar e celebrar esse fascínio. Conclusão: temos uma multidão de cristãos mornos, amorfos, descomprometidos, insípidos, que de cristãos só têm o nome. Ao mesmo tempo, o Papa também explica que a fé cristã só se vive com e na Igreja, onde Cristo está. Não existe fé cristã de alfaiate, à medida de cada um e como cada um bem entende, sem verdadeira comunhão com a Igreja.

 

Em segundo lugar, coloca-se a pergunta: quem não acredita em Jesus Cristo, ou por outras palavras, quem não chega à fé não se salva? Noutros tempos, quem não acreditava estava condenado e excomungado. Não tinha qualquer hipótese de salvação. Fora da Igreja não existia salvação, nem mesmo para as outras ramificações cristãs. Mas o Concílio Vaticano II reformulou esta doutrina dogmática e rígida: salientou a consciência. Assim o faz o Papa Francisco: «para quem não crê em Deus a questão está em obedecer à própria consciência: acontece o pecado, mesmo para aqueles que não têm fé, quando se vai contra a consciência. De facto, ouvir e obedecer a esta significa decidir-se diante do que é percebido como bem ou como mal; e é sobre esta decisão que se joga a bondade ou a maldade das nossas ações». Um não crente, que não tenha encontrado a razoabilidade para acreditar em Deus, se for fiel à sua consciência ao longo da vida, salva-se. Esta mesma doutrina já está patente no que a Igreja chama os «cristãos anónimos», homens e mulheres de boa vontade, que não assumem a fé cristã e não fazem parte da Igreja, mas que comungam e agem na vida de acordo com muitos princípios e valores do Evangelho, na fidelidade à sua consciência. Convinha vincar que é preciso ouvir mesmo a consciência, sendo necessária a devida formação, onde «o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado» (Gaudium et Spes, nº 16). Hoje em dia a palavra consciência anda num mar de confusões, confundida, muitas vezes, com arbitrariedade individualista ou sendo máscara de puro subjetivismo. Convinha também salientar que todo o homem é «capaz» da fé e está feito para a relação com Deus. Entende-se que determinadas pessoas tenham mais exigências intelectuais do que outras para acreditar em Deus e até podem mesmo, com verdade, não conseguir chegar lá. Mas não confundir isto com a teimosia ou o comodismo de não querer acreditar. Estes casos ficam entregues à misericórdia de Deus.

 

Em terceiro lugar, o problema da verdade absoluta, diante da postulação moderna de que só existem verdades relativas e subjetivas. O Papa Francisco sublinha que a verdade não é tanto um produto intelectual, uma teoria, uma tese soberbamente pensada, que todos têm de aceitar inquestionavelmente, mas é algo que se encontra caminhando na vida, porque a verdade é uma relação: o amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Chegar à verdade implica caminhar. A verdade não é algo que se tem para sempre adquirido e se atira ou impõe aos outros, como é tendência do agir humano, mas é algo que continuamente e humildemente deve ser procurado, acolhido e expresso. Claro que para nós, cristãos, existem absolutos: Deus, o homem, entre outros, e devemos afirmá-los sem medos e cedências. Mas façamo-lo com humildade. Ainda há muito para caminhar. Não caíamos na sobranceria de pensar que temos a verdade na mão e temos o direito de silenciar quem pensa diferente. Podemos saber muitas coisas de Deus e estar muito longe dele e da sua verdade, que é o Amor. Quem ama está mais perto da verdade.

 

Por fim, o Papa Francisco lembra-nos que «a Igreja não tem outro sentido e outra finalidade que não seja viver e testemunhar Jesus Cristo». Andam por aí muitas coisas a distrair-nos desta razão de ser da Igreja.  

04.10.13

A Fundação Francisco Manuel dos Santos, conduzida por uma das figuras e das vozes mais sapientes e sensatas de Portugal, António Barreto, promoveu uma série de debates sobre a Europa, nos dias 13 e 14 de Setembro, no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Sob a moderação de Maria Flor Pedroso, um dos debates abordou o tema «A Europa precisa de Deus?», sendo convidados João Pereira Coutinho, Joana Amaral Dias e Manuel Braga da Cruz, antigo reitor da Universidade Católica Portuguesa. As duas vozes masculinas alinharam na mesma direção, embora com argumentações ligeiramente diferentes: a Europa precisa de Deus. O cristianismo está na alma da Europa e não se pode compreender a Europa sem o Cristianismo. As raízes cristãs europeias são inquestionáveis e ajudam a compreender a sua matriz humana, cultural, social e espiritual. Joana Amaral Dias, psicóloga clínica, esquerdista e ateia assumida, manifestou opinião contrária: a Europa não precisa de Deus, mas «precisa de coisas bem mais importantes, como arroz e dinheiro». Lembrou que a Europa é o continente menos cristão atualmente e que os europeus consideram os valores da justiça, da democracia, da igualdade, dos direitos humanos ou da paz mais importantes do que a religião.

 

Joana Amaral Dias tem razão numa coisa: a Europa já é o continente com menos cristãos. São muitos os fatores que explicam esta evolução e um dos principais é a invernia demográfica da Europa. O cristianismo está a crescer na Ásia, na América Latina e na África, precisamente as zonas mais populosas do planeta. Mas a força de uma religião não está no número dos seus sequazes, mas na qualidade da sua presença no mundo. Grande parte dos europeus ainda têm uma grande identificação com o património moral e espiritual da fé cristã. E quanto aos valores que os europeus privilegiam, convém não esquecer o grande contributo do cristianismo na sua formulação e na sua vivência. Alguns têm inspiração bíblica e outros têm a sua génese na reflexão cristã. A Europa tem uma clara matriz cristã. Nenhuma instituição, partido ou ideologia, e até mesmo intelectual liberal, deveriam desprezar ou olvidar esta verdade fundamental, como já aconteceu. Quem nega ou arranca as suas raízes fica perdido e sem norte, fica sem identidade, e cai nas mãos do vento, que não deixará de nos arrastar para onde bem lhe interessa. O futuro da Europa passa pelo reencontro e pelo despertar das suas raízes cristãs, passa por dar a Deus e à sua revelação o papel principal na sua configuração humana, social, cultural, jurídica e espiritual. Com isto eu não quero dizer que as pessoas têm de ser cristãs à força, quero dizer que devemos muito ao cristianismo e que não nos podemos compreender e projetar para o futuro, enquanto europeus, sem ele. Deu um cariz próprio à Europa, deu forma à Europa.

 

Interessante é o conceito redutor que Joana Amaral Dias tem da pessoa humana, apenas feita de necessidades materiais. O homem precisa de arroz e dinheiro. Que visão tão pobre da humanidade! O homem precisa de arroz ou pão e dinheiro, mas precisa de muito mais. É este o problema do pensamento tacanho de uma certa esquerda: interpreta a vida de forma materialista e vira as costas à verdade total e mais profunda da vida e do ser humano. Lá no fundo, não passa de comunismo refinado, que entende que a existência humana tem «por missão única a produção de riqueza por meio do trabalho coletivo, e único fim o gozo dos bens da terra num paraíso ameníssimo de delícias onde cada qual «produziria conforme as suas forças e receberia conforme as suas necessidades», como diz a Encíclica do Papa Pio XI, «Divinis Redemptoris», necessidades materiais, acrescento eu, porque o comunismo só aceitava a matéria. Esta visão da vida foi encarada pela Igreja como «um sistema cheio de erros e sofismas, igualmente oposto à revelação divina e à razão humana; sistema que, por destruir os fundamentos da sociedade, subverte a ordem social, que não reconhece a verdadeira origem, natureza e fim do Estado; que rejeita enfim e nega os direitos, a dignidade e a liberdade da pessoa humana». Ser homem não seria mais do quer ser uma máquina de trabalho, para atingir e se refastelar no bem-estar material. O homem tem a sua dimensão material, mas também tem consciência, tem inteligência, tem vida interior e espiritual, tem coração, tem vontade de sonhar e  de fantasiar, tem uma sede de plenitude, de infinito, de eternidade, de verdade, que nenhum bem efémero do mundo consegue satisfazer.

 

Um argumento para se marginalizar a fé ou a religião, que agora está muito na moda e que ali também foi retocado, é que as religiões são fonte de cegueira, de fundamentalismo, de divisão, de guerras e de violência. O mundo seria bem melhor e haveria mais paz sem as religiões. É verdade que as religiões, infelizmente, porque são mal interpretadas e porque são instrumentalizadas para vários fins, têm agudizado alguns conflitos e contendas em algumas partes do mundo. Mas as religiões não têm culpa. Nenhuma consegue controlar todos os seus seguidores. Todas, e falo sobretudo do cristianismo, têm uma mensagem de paz e de humanização e procuram promover a tolerância e o diálogo entre todos os homens. Não são violentas e não são geradoras de fanatismo. Têm é fanáticos, que se servem delas para satisfazer outros interesses. Mas ainda assim, como muito bem lembrou João Pereira Coutinho, os ateus de esquerda e de direita do século XX mataram mais pessoas do que todas as religiões juntas. As religiões não são o problema, mas o homem, corrompido com o pecado e com as suas convicções tenebrosas e diabólicas, que existe fora e dentro delas.

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