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minhas notas

27.09.12

A figura do padre sempre suscitou muitas conceções, interrogações e interpretações ao longo dos tempos, pelo facto de apelar para alguém invisível e se revestir de um carácter sagrado não acessível ao comum dos mortais, sempre gerador de espanto, curiosidade e mistério. Para muitos, é o «homem da humanidade», que ensina e testemunha supinamente os valores humanos, que ensina os princípios, os comportamentos e os sentimentos mais nobres e magnânimos de que se deve revestir o ser humano, na fidelidade ao «projeto humano» de Deus. Para outros, é o «homem de Deus», que tem por missão ser ponte para a relação e a comunhão com Deus, sendo evangelizador e indicando caminhos, posturas e atitudes para o encontro com o mistério divino, pelo qual anseia o coração humano. O padre é uma simbiose do humano e do divino, por obra de Deus. Mas até onde vai o humano e o divino? O padre nunca deixa de ser homem, é verdade, mas também já não é só homem. A sua natureza e a sua identidade foi indelevelmente enriquecida e alterada por Cristo, que o habita. O seu ser foi assumido pelo ser de Cristo. É representante e imagem, não no sentido de substituição, mas de visibilidade, do sacerdote por excelência, Jesus Cristo, sem perder a sua humanidade. Um padre não é um anjo, mas também já não é só homem, é eternamente sacerdote com e em Cristo, participando do seu sacerdócio. O seu ser passou a ser o ser de Cristo, dentro da sua frágil humanidade.

Nem sempre esta realidade mais profunda é devidamente captada e entendida por muitos cristãos. Daí nasceu uma frase feita, que por aí anda: "O padre é padre na igreja, mas fora da igreja é um homem como os outros". É um disparate. O ser padre não é um capote que se põe e se tira e que se gere conforme as conveniências. O ser homem e o ser padre estão intimamente unidos e são inseparáveis. O padre é sempre padre. O seu ser está intimamente configurado com Cristo. Não tem outra maneira de ser, nem pode ser outra coisa. O padre é e será sempre sacerdote de Cristo, onde quer que se encontre, porque o seu ser é o ser de Cristo. Esta é a sua única realidade e não há outra. Se fossemos coerentes com aquela frase feita, também teríamos de admitir que um homem casado só é casado dentro de sua casa, na praça pública é um homem solteiro, ou que um patrão só é patrão dentro da empresa, fora da mesma está ao nível dos empregados, o que não é verdade, certamente. Para não provocarmos o sorriso ou a perplexidade nos rostos dos padres, já é tempo de se corrigir este dislate, que, infelizmente, se ouve vastamente, o que revela uma irreflexão picaresca de muitos cristãos e não cristãos. D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, dizia aos ordenandos, nas últimas ordenações: "A quem vos disser que “tendes de ser como os outros”, respondereis redondamente que não, porque preferistes ser para os outros, como Cristo o foi e continuará a ser através de vós. A quem vos disser que “o padre há de ter a sua vida, como toda a gente tem direito a tê-la”, respondereis que não, pois vos desapossastes de vós, para que Cristo vos preencha inteiramente com a sua vontade e o seu afeto, assim chegando a todos os que precisam, sobretudo aos que menos são queridos e amados".

Outra frase feita, que amiúde se intromete com pirraça nas conversas e debates onde padres estão presentes, é: "Olhai para o que eu digo e não para o que eu faço". Outro desconchavo. Se alguém aceita que assim seja, aceite, e há quem aceite. Mas não tem o mínimo cabimento com o padre, nem com qualquer outra pessoa. O padre tem o dever e a obrigação moral de ser o primeiro exemplo daquilo que ensina. Só assim é verdadeiro pastor e uma referência para os seus paroquianos ou para os fiéis da Igreja em geral, apesar de todos sabermos que ninguém está imune de ter falhas e cometer incongruências. Mas dizer-se, com uma serenidade alarmante, que se pode andar a dizer uma coisa e depois fazer o seu contrário, é uma afronta à consciência e à verdade da vida. Tem de existir unidade de vida, seja na vida do padre, seja nada vida de qualquer outra pessoa, entre a palavra e os atos, sob pena de não se ter credibilidade nenhuma e não se merecer o respeito de ninguém e, no caso do padre, ser um grave atentado à reta vivência do ministério que assumiu. Como é que um pai educa, se faz o contrário do que ensina? Como é que um professor educa e incentiva, se pela sua vida testemunha o oposto? Sabemos, por experiência, que o mundo valoriza mais o que se é e faz do que aquilo que se diz e leva a sério o que se diz, se se faz. Por isso, há que unir o dizer e o fazer, numa coerência inabalável de vida. E não só para o padre, mas para todo o cristão. Já há algumas décadas atrás, o Cardeal Cerejeira se espantava: "Prova-se aritmeticamente que, ou os católicos não são a grande maioria que dizem, ou então a maioria é constituída pelo menos de… poltrões. Há cristãos que servem só para desacreditar a religião que professam. São, pela sua vida, os caluniadores de Cristo. A vida de muitos cristãos resume-se a pouco mais do que isto: comeram e não fizeram mal a ninguém”. 

10.09.12

Um dos livros que ando a reler, com renovado entusiasmo, no pouco tempo que tenho à disposição nestes ofegantes e agitados meses de Verão, é um livro que me ficou no goto desde os tempos de estudante: O Homem Light, uma vida sem valores, de Enrique Rojas. Se antes o li entre quatro paredes, na ingenuidade de um discente curioso que se atrevia a perscrutar um pouco a realidade humana e social que iria enfrentar um dia, hoje faço-o, convencido e afirmativo, com a constatação e alguma experiência que me foi dada a sorver, no palco da vida. Temos de repensar o rumo que o homem seguiu nas últimas décadas, cego pelo bem-estar acima de tudo e a todo o custo.

 

Nos últimos anos, uma série de produtos light invadiu o mercado, facilmente ao nosso dispor em qualquer hipermercado. São produtos que foram alterados na sua identidade, nomeadamente no grau de gordura ou açúcar que oferecem, para não serem tão nocivos à saúde e para satisfazerem os níveis de elegância e estética que o homem contemporâneo prolatou. Andam por aí cerveja sem álcool, manteiga sem gordura, açúcar sem glicose, tabaco sem nicotina, coca-cola sem cafeína, vários produtos alimentares com poucas calorias e com pouca gordura. Alguns especialistas já alertaram que estão cheios de mentiras e que as substâncias que são adicionadas para a sua mutação poderão não ser as mais saudáveis. Mas como o homem atual é escravo da sua imagem, em nome dela está disposto a tudo. Ainda não se lembraram de fazer queijo da serra light (pelo menos que eu saiba), e espero muito bem que tenham um ataque de amnésia. Será um atentado inaceitável ao honroso queijo serrano e aos abnegados pastores, que enfrentam intempéries de toda a espécie, para oferecem ao mundo uma das suas melhores iguarias.

 

O que são, afinal, os produtos light? São produtos que perderam a sua essência, o seu conteúdo, a sua alma, o seu sabor. Ainda sabem a alguma coisa, mas correm o perigo de não saber a nada. Querem ser tão suaves e leves, que pouco faltará para serem reduzidos a nada. Segundo a opinião de Enrique Rojas, depois da queda dos totalitarismos e da crença nas ideologias, que dominou grande parte do século vinte, e na senda dos produtos light, nasceu também «um homem light»: «um homem sem essência, sem conteúdo, sem valores, entregue ao dinheiro, ao poder, ao êxito e ao prazer ilimitado e sem restrições», um homem «que tem por bandeira uma tetralogia niilista: hedonismo (prazer), consumismo (ter e desfrutar), permissividade (vale tudo) e relativismo (subjetividade). Todos eles impregnados de materialismo.»

 

Não nos é difícil constatar isto. São estes os valores que atualmente fazem correr a maioria das pessoas. Mas, são estes os valores que dão solidez e sentido à vida? «O homem light carece de pontos de referência, vive num grande vazio moral e não é feliz, ainda que tenha materialmente tudo», afirma o autor.

 

É certo que o período dos totalitarismos, onde predominou o autoritarismo, o terror, a opressão, a violência, o desrespeito pelos direitos humanos, lançou a suspeita sobre os princípios e os valores, minou a vontade de se entregar a algo ou a alguém, e despoletou a ânsia coletiva da eclosão de um tempo de exercício da liberdade, e o desmoronamento das ideologias torpedeou o empenho por mudar a sociedade e se entregar a causas e a ideais, e afagou a desilusão e o desencanto, mas o homem que surgiu despois daquela época tenebrosa também está muito longe de poder concretizar a realização da sua humanidade. Nas palavras de Enrique Rojas, desabrochou um homem relativamente bem informado, mas com escassa educação humana, entregue ao pragmatismo. Tudo lhe interessa, mas só a nível superficial. Não é capaz de fazer a síntese daquilo que recolhe e, por conseguinte, é um sujeito trivial, vão, fútil, que aceita tudo e não tem critérios sólidos na sua conduta. Reveste-se das seguintes características: «pensamento débil, convicções sem firmeza, apatia nos seus compromissos (que reduz ao mínimo); indiferença feita de curiosidade e relativismo ao mesmo tempo; a sua ideologia é o pragmatismo e o imediato; a sua norma de conduta é o hábito social, o que se tolera e o que está na moda; a sua ética fundamenta-se na estatística, substituta da consciência; a sua moral, repleta de neutralidade, falta de compromisso e subjetividade, é relegada para a intimidade, sem se atrever a vir a público». Diagnóstico soberbo. Eis alguns frutos do homem light: crise e rutura do casamento, o drama das drogas, o culto da noite (muitas vezes para esconder um dia sem metas, sem sentido, sem objetivos e sem ideais), o absentismo ao trabalho, deterioração das relações humanas, decréscimo da educação, enfraquecimento das associações e do espirito associativo, individualização em detrimento da sociedade ou da comunidade, entre outros.

 

Estes tempos convulsos que vivemos, que são consequência do homem light que reinou nos últimos anos, devem-nos despertar para uma nova conceção de ser homem e de ser sociedade, um novo paradigma de que já muitos falam, mas um novo paradigma que não tenha medo de encarar a verdade mais profunda da vida e do homem, na resposta aos anseios mais profundos do coração humano, e que procure o que é mais nobre e digno do ser humano. Enrique Rojas deixa-nos a sua solução: «Frente à cultura do instante (uma existência inútil) está a solidez dum pensamento humanista; frente à ausência de vínculos, o compromisso com os ideais. É necessário superar o pensamento débil com argumentos e propostas suficientemente atrativas para o homem, de forma a possibilitar que este eleve a sua dignidade e as suas pretensões», «há que conseguir um ser humano que esteja disposto a saber o que é bem e o que é mal; que se apoie no progresso humano e científico, mas que não se entregue à cultura da vida fácil, onde qualquer motivação tem apenas como fim o bem-estar, um determinado nível de vida ou o prazer sem limites. Um homem consciente de que não pode haver verdadeiro progresso humano enquanto este não se desenvolver numa base moral».

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