23.08.12
O caso "Miguel Relvas" fez furor durante uns dias, nas bocas de muitos portugueses, na imprensa e, claro, nas denominadas redes sociais, que, para muitos medrosos e timoratos, é o espaço privilegiado para desabafarem a sua raiva, malcriadez e sarcasmo gratuito, na convicção de que por ali não andam a puridade, o respeito pelos outros e a decência. Hoje em dia, qualquer caso, desde o mais cómico ao mais bizarro, torna-se facilmente num vírus, disseminado em poucas horas, até causar a congestão e o enfado no circo mediático. Já parámos um pouco para pensar o quanto deve ser doloroso e pungente cair nas malhas da imprensa irresponsável e insensível, que por aí abunda, de pendor trágico-sensacionalista? Já nos detivemos a pensar, um instantezinho que seja, que em cinco minutos destruímos a vida de uma pessoa, sem termos direito a tal? Ou só abriremos os olhos e despertaremos o coração quando os raios e coriscos caírem nos nossos telhados? Tudo isto põe a nu um gourmet à portuguesa: gosta-se de falar mal dos outros, porque se é comodista ou invejoso, ou pura e simplesmente porque se é desbocado, gosta-se de nivelar tudo e todos com uma boa dose de humilhação pública.
O que se passou com o Senhor Miguel Relvas é inaceitável e insultuoso para quem se pauta pelos valores da seriedade, da responsabilidade e da honestidade, se entrega com sacrifício e abnegação ao estudo e à sua profissão, num país, que sendo pobre, não deve perder o decoro e a dignidade. Mas, infelizmente, o caso "Miguel Relvas" é um bom retrato da sociedade em que vivemos. Por isso, não consegui entender tanta indignação e escárnio à volta do caso, a não ser claro, porque está no governo e a agenda mediática precisa de casos, e porque ainda temos hipocrisia quanto baste. O que muitos criticam no caso "Miguel Relvas" é o que muitos procuram ou não condenam no dia-a-dia. Se um filho nosso nos chegar a casa, dizendo que tem milagrosamente um canudo, tendo-lhe sido reconhecidos alguns méritos e ido a meia dúzias de aulas, que a partir de amanhã já vai começar a ganhar dinheiro, quem é que vai protestar com o reitor da universidade? Até somos capazes de rejubilar porque o rapaz começa a "safar-se", o rapaz está a aprender a ser "finório".
Miguel Relvas é um fruto maduro desta sociedade lamacenta e núbia de que fazemos parte, onde são notórios alguns vícios irritantes: busca sôfrega por títulos, por vaidade bacoca, confundindo-se a dignidade com os títulos - julgamos que por termos qualquer coisa atrás do nosso nome temos mais dignidade e merecemos mais respeito - e assim é porque o povo português, ou parte do povo português, tem gosto pela sabujice e adulação, que, por vezes, chega a ser desesperante. Ainda são resquícios do velho "respeitinho", de cariz feudal e autoritário. Desde a nossa tenra idade nos vamos apercebendo, e se não nos apercebemos, alguém nos fará o favor de o esclarecer bem, que quem é "doutor" merece outra atenção e respeito que os outros não merecem. Daí que todos queiram ter um Dr., mesmo que o não sejam, mas sempre dá para ser alvo de salamaleques e para fazer de andor em alguns ambientes. Aliás, como o nome padre já está um pouco gasto e como pároco gera equívocos na pronúncia, vou passar a exigir que me tratem por excelentíssimo e digníssimo senhor presidente da fábrica da igreja paroquial da Freguesia tal. Causa estrondo. Claro que as instituições e quem as representa merecem todo o respeito e reconhecimento. Mas não exageremos. Pós de simplicidade não fazem espirrar ninguém. Respeito merece-o toda e qualquer pessoa.
Outros vícios da sociedade portuguesa, com barbas e rugas, é o sistema dos favorzinhos, dos empurrõeszinhos, do amiguismo, das cunhas para isto ou para aquilo, o compadrio, a ratice de secretaria, os furões de sistema, sabiamente temperados pela devida dose de chicoespertismo(que figura!, julgando- se que os outros são parvos). Há muito tempo que andamos em guerra civil, nas nossas instituições, nas nossas empresas, no aparelho do Estado, onde a troco de se satisfazerem ambições e orgulhos e a avidez por poder e boas remunerações, se esmagam os mais competentes e os que têm mais mérito, querendo cada um governar bem a sua vida, sem se preocupar minimamente com o bem do país e dos outros. E já verificámos que há mesmo gente sem escrúpulos, que não treme um bocadinho em destruir a vida dos outros, sem olhar a meios. São os efeitos práticos do subir na vida, de que tanto gostamos de falar, não se explicando cabalmente que nem todos os meios são aceitáveis, mas que se deve subir com empenho, honestidade e trabalho, e que mesmo que não se suba não se deixa de ser quem é, nem se perde a dignidade. O quanto não teríamos que escrever se vasculhássemos retamente o percurso de tanta gente que ocupa cargos e que tem emprego por este Portugal abaixo, e o que está na base de tantas decisões e de tantos acordos e negócios. Se é esta a estratégia que a nossa sociedade fomenta e tolera, porque é que o Senhor Miguel Relvas não haveria de recorrer a ela, como tudo o aparenta? Assim sendo, importam-se de repetir porque é que o caso Miguel Relvas deu tanto barulho?