28.04.12
Na última solenidade de Todos os Santos, 1 de Novembro de 2011, na homilia que dirigi ao povo, abordei a veneração aos santos e algumas concepções erradas e «desvios» que se verificam na devoção aos santos. Tenho recebido muitos ecos dessa homilia, uns francamente positivos, outros de dúvida e questionamento, e outros até de repulsa, roçando até quase o escândalo. Em algumas pessoas, mais idosas, causou «mossa» na sua fé. Pelos vistos, comentou-se que «afinal o padre diz que os santos não fazem milagres». «Eu não digo que os padres ainda vão acabar com a religião?», terão desabafado alguns no seu íntimo. E se, de facto, é para acabar com a religião que não serve a Deus, que assim seja. Chamo para aqui este tema para explicar melhor o que disse e catequizar, sem qualquer laivo acusatório ou criticista, um pouco os cristãos na recta devoção aos santos, visto que nos aproximamos dos meses das festas aos santos e santas, ou melhor, das festas aos santos que têm maior enraizamento popular e social.
Uma fé madura e esclarecida sabe colocar tudo no seu devido lugar e sabe encontrar o centro, sem se perder muito na periferia. Sabe em que deve acreditar, como deve acreditar e porque deve acreditar. É este o problema de alguns cristãos: perdem o tempo todo na periferia e nunca chegam ao centro, acabando por viver uma fé enviesada e distorcida. E o centro da fé cristã é Jesus Cristo, pelo qual chegamos a Deus. É nele que somos chamados a ser filhos de Deus e membros da Igreja. Tudo parte dele e tudo é para chegar a Ele. Mesmo a Igreja não existe para si mesma. Existe para Cristo e tudo o que faz é para viver mais em Cristo e testemunhar a sua vida e a beleza do seu amor ao mundo. Para chegarmos a Cristo e por Cristo a Deus, única fonte de toda a vida e de todos os bens – não percam de vista esta afirmação – no sentido de termos algo que nos inspire e oriente para chegarmos lá, a Igreja apresenta-nos vários caminhos, nomeadamente a devoção a Nossa Senhora e a devoção aos santos. Estes cultos – não esquecer que «culto» só Deus o merece e mais ninguém – não existem por si mesmos e para si mesmos. Existem para aportarmos em Cristo e para enriquecerem a nossa vivência em Cristo e é esse o seu único fim. Não pode haver culto aos santos sem relação com Jesus Cristo e com a Igreja. Todo e qualquer culto aos santos sem comunhão com Deus é um grave erro de fé e uma vivência deformada da fé.
Quem são os santos? Vamos aos documentos da Igreja. A Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, diz assim no seu artigo 49, em que aborda a união da Igreja celeste com a Igreja que ainda peregrina na terra: «Os bem-aventurados (os santos), estando mais intimamente unidos com Cristo, consolidam mais firmemente a Igreja na santidade, enobrecem o culto que ela presta a Deus na terra, e contribuem de muitas maneiras para a sua mais ampla edificação em Cristo. Recebidos na pátria celeste e vivendo junto do Senhor, não cessam de interceder, por Ele, com Ele e n'Ele, a nosso favor diante do Pai, apresentando os méritos que na terra alcançaram, graças ao mediador único entre Deus e os homens, Jesus Cristo, servindo ao Senhor em todas as coisas e completando o que falta aos sofrimentos de Cristo, em favor do Seu corpo que é a Igreja. A nossa fraqueza é assim grandemente ajudada pela sua solicitude de irmãos». Os santos são homens e mulheres que viveram na terra (não esquecer a sua humanidade), que levaram uma vida humana e cristã exemplar, que seguiram a Cristo ao longo de toda a sua vida e viveram a radicalidade evangélica, consumando em si mesmos, com a ajuda de Deus, a perfeição de filhos de Deus. Após a sua morte, como amigos de Deus que eram, foram chamados por Deus a tomar parte na vida em plenitude, no céu, isto não esquecendo os santos da terra. Reparo que muitos cristãos têm uma ideia angelical dos santos, parecendo quase seres de outra galáxia, com poderes extraordinários, que foram contemplados com graças excecionais da parte de Deus e que agora se entretêm a distribuir graças aos pobres dos humanos. É uma imagem que não tem o mínimo cabimento. Muito para isso contribuíram as historietas e as lendas deslumbrantes sobre a figura e a vida dos santos, nunca se separando a lenda da realidade. Foram pessoas de carne e osso, que tiveram um percurso exemplar pelos caminhos de Deus e é isso que os distingue de nós.
Agora que estão junto de Deus, o que fazem? Como nos diz o documento da igreja, intercedem. São intercessores a favor do povo de Deus e das necessidades de toda a humanidade. E, olhando à configuração da sua vida entre nós, a Igreja atribuiu-lhes a defesa de uma necessidade junto de Deus, como por exemplo S. Brás, protetor contra as doenças da garganta, ou S. Luzia, protetora dos olhos. Eles não têm nenhum poder excecional, não têm nenhuma varinha mágica nas mãos para premiar devotos. Pura e simplesmente, intercedem junto de Deus. E desta forma, sem rodeios, temos de dizer que não são eles que fazem milagres, mas é o próprio Deus. Devido à sua intercessão, nasceram os conceitos de patrono e de padroeiro. São pais. Cuidam de um determinado povo ou nação, intercedendo junto de Deus, além de servirem de referência e modelo para as pessoas que os honram.
No dia 1 de Novembro, afirmei que, actualmente, muitos cristãos sofrem de «santite» e de «milagrite». Santite no sentido de se andar atrás dos santos para se obter favores, sem se dar importância à relação com Jesus Cristo e com a Igreja e sem qualquer vontade de se crescer na santidade. No verão, vemos as romarias cheias de pessoas, que zelosamente vêm cumprir promessas, que durante o ano raramente vão à Igreja. Não tem o mínimo sentido. Ser cristão é servir a Deus e não servir-se de Deus. Devoção aos santos sem vontade de aderir a Deus é um comportamento desviante. Milagrite no sentido de se querer que tudo magicamente se resolva e de se ver milagre em tantas coisas onde imperam as leis da natureza. Se existem milagres ou não, só Deus sabe. Não é ouvir que o salvamento dos pescadores de Caxinas foi um milagre. Milagre foi eles terem tido uma balsa. Se foi um milagre, porque é que morreram já tantos pescadores? Temos de ter muita ponderação acerca dos milagres e não cair no erro de os banalizar. Como naquele dia referi, existem dois desvios, entre outros, que por aí andam sobre a devoção aos santos que é preciso corrigir: a promoção de uma conduta desresponsabilizante e a promoção de uma religião interesseira. Quanto ao primeiro, repare-se no nosso comportamento: pedimos saúde a Nossa Senhora e depois abusamos do álcool ou do que quer que seja. Ou pedimos a graça de uma boa viagem e depois vamos a duzentos a transgredir as regras a torto e a direito. Então como é que é? A devoção aos santos não é para promover a nossa irresponsabilidade. Quanto ao segundo, aproximamo-nos dos santos com o intuito de nos dar alguma graça, numa lógica de dou para que dês. Se não «dessem» nada, não nos aproximava-mos deles. A religião cristã é a religião da gratuidade e não dos interesses.
Devemos continuar a ter devoção aos santos? Claro que sim. São homens e mulheres que nos puxam para cima e nos mostram a beleza da vida de Deus. Mas fazê-lo como deve ser. A devoção (dedicação ou consagração) aos santos é para melhor nos aproximarmos de Cristo e em cristo atingirmos a perfeição de filhos de Deus. Eles são modelos, referências, exemplos que nos estimulam e motivam e que nos ajudam, intercedendo, para atingirmos a meta. Através dos santos, entramos em diálogo com Deus e Deus vem até nós. Não são seres para passarmos a vida a dar graxa para satisfazerem os nossos caprichos ou interesses. Boas devoções.