26.05.11
Se bem se lembram, aqui há uns tempos dissertei um pouco sobre os valores e contra-valores, mais numa perspectiva pessoal e personalizante. Retomo o tema, numa abordagem mais social. Vamos constatando todos os dias, com cintilante inquietude, uma clara crise de valores. Vivemos uma crise de crises. A económica e financeira ocupa a maior parte do tempo e das discussões, mas ela é reflexo de uma crise mais profunda: uma crise dos verdadeiros valores humanos e sociais. O dinheiro só por si não cria crises. Quem o usa, gere e distribui é que criou a crise. As crises nascem das más condutas e das más opções das pessoas. Mas o que são afinal valores? Numa primeira abordagem simplista, como a própria palavra o indica, é aquilo que vale, é aquilo que é mais importante e ao qual damos preferência. E aqui aportados, coloca-se a questão fundamental: ao que é que devemos dar preferência? Devemos dar preferência àquilo que valoriza a vida de todos, àquilo que é bom para todas as pessoas, àquilo que nos torna mais humanos. Aqui é que está o busílis da crise de valores. Nos últimos tempos, as pessoas subjectivaram e relativizaram a sua vida e deixaram de ter em conta o que mais engrandece e humaniza a vida de todos. Na linha do filósofo francês Paul Ricouer, as pessoas deixaram de fazer tudo o que visa o bem e que constrói uma vida de boa qualidade para todos.
Alguns preferem dizer que há talvez uma crise de hierarquização dos valores. Também tem o seu sentido. Trocou-se o essencial pelo acessório, com forte pendor individualista. Mas quem quer tudo, não tem nada. Cada valor tem o seu valor e não valem todos o mesmo. Há valores que são estruturantes e fundamentais, de que nenhum indivíduo pode prescindir. É urgente que a educação e a formação contemporâneas fomentem uma autêntica hierarquização dos valores, definindo o que realmente é importante e insofismável, e que todos devem integrar na sua maneira de ser e na sua conduta, e o que é secundário. Se não buscamos todos o que é bom e humano, dificilmente o nosso mundo pode ser bom e humano.
Vendo mais de perto a nossa realidade actual e analisando um pouco a crise económica e financeira que estamos a viver, é por demais evidente que ela é fruto do deformado figurino de valores humanos e sociais que deixámos imperar nas últimas décadas. Fortemente veiculada pelos meios de comunicação social, instalou-se uma cultura de valorização da diferença, do pluralismo das ideias e soluções, do choque de pontos de vista e de perspectivas, de culto da conflitualidade e da rivalidade, cultura essa que se estendeu à política, à economia, à sociedade. Esta cultura, na qual ainda vivemos, não é má. Como vivemos em democracia, ela conquistaria, mais tarde ou mais cedo, a sua preponderância. É salutar que haja debate e confronto de ideias e de projectos. Mas não podemos ficar só aí. A vida não é um ringue de boxe. As nossas diferenças não são só para rivalizarmos, mas acima de tudo para nos completarmos. O confronto e a rivalidade são bons se não tolhem a colaboração e a cooperação entre todos, colocando-se o bem que todos têm ao serviço da resolução dos problemas e das dificuldades. Nos últimos anos, apostou-se demasiado em vincar diferenças, aumentar distâncias, diminuir adversários, abater concorrentes, secar talentos, arrasar soluções e planos alheios, criar conflitos estéreis, fomentar rivalidades bacocas, em que a nossa velha inveja portuguesa é perita. A crise, que actualmente vivemos, é também, e acima de tudo, uma crise de entreajuda e de cooperação entre todos, é uma crise de diálogo e de interacção humana. E até diria mais: é uma crise de humanidade, porque perdemos o gosto de apreciar o bom que o outro tem. É tempo de cada um puxar pelo melhor que tem e pô-lo ao serviço do bem comum e quem está à frente da organização da sociedade saber integrar e harmonizar o bem que todos podem dar. Recordam-se da parábola dos talentos? Um senhor (Deus) deu a um cinco talentos, a outro dois e a outro um (as nossas qualidades e diferenças). Os que receberam cinco e dois, fizeram render outro tanto. O que recebeu um, com medo do senhor, enterrou-o e entregou-lho mais tarde. Claro, provocou a ira do seu senhor. Devia ter feito render outro tanto. É uma parábola para os nossos tempos, em todos os sentidos. Erigimos uma cultura negativa de afirmação e anulação, que nos colocou a todos a guerrear uns com os outros, fazendo reinar a ideia de que quando uns mostram os seus talentos, outros são obrigados a enterrá-los, ou até a ideia de que para uns estarem bem, outros têm de estar mal ou diminuídos (repare-se no debate político, na propaganda empresarial, no discurso desportivo e nas relações entre certas instituições). Mas não devemos ir por aí. Todas as pessoas têm talentos. Temos de edificar uma cultura de cooperação, em que cada um puxa pelo melhor que tem e coloca-o ao serviço da sociedade e ajuda os outros a darem o melhor que têm. Ultrapassar a crise económico-financeira que estamos a viver passa muito por aqui. Há que dar lugar a uma cultura mais positiva, que estabeleça pontes com as virtudes e aptidões que todas as pessoas e forças podem dar à sociedade.