29.12.10
Num destes dias, arrumava melhor uns livros e umas sebentas do tempo da universidade e, inesperadamente, reencontro um pequeno trabalho de grupo sobre Miguel Torga, que eu e mais alguns colegas fizemos no Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real, dentro da área de Literatura Portuguesa. Na altura, o ensino até ao 9º ano de escolaridade era dentro do Seminário e do décimo ano até ao décimo segundo era no Liceu de Vila Real. Recordo com alguma saudade e gratidão os anos que vivi no Liceu. O ambiente geral era muito bom e o nível dos professores, na sua maioria, era elevado. Tinham muita qualidade. A minha turma teve o privilégio de representar uma peça, adaptada de um conto, de Pires Cabral, escritor transmontano e professor no Liceu.
Trago para aqui este trabalho porque Miguel Torga é transmontano, dos escritores mais telúricos que temos, que melhor retratou e deu a conhecer a cultura transmontana, e porque penso que darei a conhecer alguns dados da sua vida, no sentido vivencial, que alguns leitores e apreciadores de Miguel Torga e da literatura em geral não conhecerão, sendo mais umas achegas sobre a sua complicada relação com Deus. Como a terra Natal de Miguel Torga, S. Martinho de Anta, Concelho de Sabrosa, dista poucos minutos de Vila Real, a professora de Literatura propôs-nos fazer um trabalho de recolha de dados biográficos a partir de testemunhos de pessoas que conviveram com Miguel Torga, de seu nome Adolfo Correia da Rocha, com o intuito de se conhecer melhor a sua vida e o seu seu carácter e se perceber um pouco melhor a sua incidência na sua prosa e poesia. Não demorámos muito a encontrar um bom interlocutor, grande amigo de longa data de Miguel Torga: o P. Avelino, há muitos anos pároco de S. Martinho de Anta (ainda vivo, com 98 anos). É interessante notar que, apesar de ser um homem esquivo e crítico em relação à Igreja e de ter uma relação dura e complexa com Deus (não teve funeral religioso), um dos seus maiores amigos era um padre.
Durante algumas horas, mais do que dissecar uma personalidade complexa e ambígua e falar do homem introspectivo e sorumbático que Miguel Torga era, homem de trato difícil, mas de bom coração, conhecido na aldeia por andar sempre muito pensativo e cabisbaixo e ser parco em palavras, o P. Avelino foi expondo alguns episódios vividos com Miguel Torga e que arrumou na sua memória. Certo dia, estavam numa acalorada e excitada discussão sobre crença e descrença em Deus, tema central e recorrente na obra de Miguel Torga, e como se começava a questionar a condição cristã de alguns dos presentes e os méritos de cada um face ao tema, nisto, intrepidamente, Miguel Torga atira ao P. Avelino: «desculpe, o Senhor é um cristão profissional, eu sou um cristão livre». Frase surpreendente de Miguel Torga. Nunca negando de todo a sua formação cristã, Miguel Torga sempre quis ter o seu espaço próprio para questionar Deus, distanciando-se do seguidismo cego e acrítico de muitos crentes e recusando a domesticação de qualquer tradição religiosa. Queria fazer o seu próprio caminho, até ter o direito de negar Deus e de o afastar da vida, algo que tentou fazer ao longo da vida e que não conseguiu, como escreveu no seu Diário XIV: «Coimbra, 25 de Dezembro de 1984 – Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de o esquecer». Jamais para o final da sua vida, mergulhado no mar das suas angústias e acossado pelos destinos últimos da vida do homem, terá dito, nas palavras do P. Avelino, ao entrar para um carro: «ainda assim creio na ressurreição da carne». Seria um Torga a preparar a sua entrada na eternidade, buscando uma reconciliação com Deus? Segundo o P. Avelino, que bem o conhecia, Torga «era um crente que não soube conviver bem com o silêncio de Deus».
Curiosa é uma cena que se passou num dia de caça, ilustrativa da sua índole pensativa e de como as palavras o alheavam do mundo. Um dia, numa plaina, sai uma perdiz a pedir chumbo, mesmo nas barbas de Miguel Torga. Para espanto do P. Avelino, Miguel Torga não reage. Vendo que a perdiz se estava a escapar, grita desesperadamente:
-ó Torga, ó Torga, olha a perdiz!
Em vão. A perdiz desaparecia no horizonte. Intrigado e atónito com a sua passividade, o P. Avelino foi ao seu encontro e perguntou-lhe:
-Então não viste a perdiz? O que é que se passou?
- Acabei há instantes um poema para o qual procurava um fim há quatro ou cinco anos - redarguiu Miguel Torga. Assim é o mundo das palavras.
Advento e Natal
A Igreja está em advento. Tempo de preparação para o Natal. O mundo anda preocupado com o exterior: luzes aqui, luzes acolá, que mais do que iluminar, encandeiam; pinheiro aqui, pinheiro acolá; embrulhos e mais embrulhos. Futilidades atrás de futilidades. Possivelmente, o mundo vai vivendo assim o advento porque anda longe do essencial da vida e do seu mistério mais profundo. A cultura actual favorece pouco a verdadeira vivência do Natal, que é contemplação da beleza da vida, família, abertura à salvação de Deus. A Igreja preocupa-se com o interior: o Natal é celebrar o nascimento do Salvador. Há que abrir-se à esperança e despertar expectativa, com um coração convertido e vigilante. Mais do que novidades, vem aí a grande novidade para o homem: Jesus Cristo. O Natal é o acolhimento de Deus em pessoa. Façam-me um favor: vão à missa do dia de Natal. Não consigo compreender como é que se pode celebrar o Natal sem ir à missa no dia de Natal, assim como ser cristão sem ir à missa do Domingo. Natal sem Cristo não é Natal. É como ir a um casamento e não cumprimentar os noivos e suas famílias. Uma participação assim cheira a imposturice. Um bom Natal para todos.