20.10.10
Pelos vistos, este ano a quaresma começa mais cedo (quaresma salvo seja…). A austeridade está na ordem do dia. Vêm aí tempos de penitência e de frugalidade. Estamos em crise. Há que fazer sacrifícios. Com tanta gente a bufar não admira que de vez em quando andem por aí umas ventanias (desculpem esta malandrice, estão a ser cometidas algumas injustiças). Nos próximos anos vai estar na moda o ideal franciscano e tenho para mim que nos vai fazer muito bem. Alguém, em seu perfeito juízo, tinha dúvidas de que esta intempérie não iria acontecer mais dia, menos dia? Nos últimos anos, andámos a viver com empréstimos do exterior, muito acima das nossas posses, à custa de querermos viver com poucos sacrifícios e com um nível de vida de país rico (altas remunerações, casa faustosamente apetrechada, férias três ou quatro vezes ao ano e por aí fora). Os senhores governantes assobiaram para o lado, como se nada se passasse (a não ser que mexessem com os seus ordenados ou estágios sobriamente remunerados em institutos e empresas públicas, como pelos vistos se consta…), prometendo tudo e mais alguma coisa, por vezes roçando a total irresponsabilidade, adiando o rigor e a disciplina de um pais que se leva a sério. O estar no poder a todo o custo sobrepôs-se à responsabilidade governativa. As coisas duras não são para se dizer e fazer. Os bancos armaram-se em promotores de satisfação e felicidade pessoal e familiar, dando ao desbarato créditos para tudo e mais alguma coisa, com total anuência do Estado. Consuma, depois logo se vê. Aí está o resultado: uma boa parte das famílias portuguesas está endividada e com famílias e empresas endividadas não há país que se aguente. Não se pode viver à custa dos outros e acima das posses eternamente.
A Europa olha para nós com compunção: como é possível que um país, que nos últimos anos foi um sorvedouro de fundos comunitários, esteja neste estado? Será que já percebemos, então, porque é que chegámos a este ponto? Estão em causa os valores que erigimos como basilares das sociedades contemporâneas, obcecadas com o dinheiro e o bem-estar e com o enriquecimento fácil, para se viver com o mínimo esforço e sacrifício. Os senhores economistas, que agora alardeiam teorias e teses para todos os gostos, não se questionando a razoabilidade das suas propostas - algumas talvez tardias - , muito além dos seus rácios e percentagens, não dizem o que é preciso: temos de mudar de vida. Temos de repensar as nossas opções e as bases da nossa vida pessoal, familiar e social. Temos de escolher outro modelo de desenvolvimento e refazer o figurino dos nossos valores. A actual crise económico-financeira (que não é só nossa) é um reflexo de uma profunda crise de valores, facilmente verificável desde há una anos para cá. Parafraseando o Doutor Jorge Sampaio, temos de perceber que há mais vida para além do dinheiro e do bem-estar. Muita gente acusa os reguladores financeiros de incompetência. Mas a actual crise não é só fruto da desregulação, mas também do excessivo culto do dinheiro e da falta de sentido de justiça e de solidariedade. Veja-se a debandada de muitas empresas que estavam em Portugal para outros países europeus ou asiáticos, sem qualquer preocupação social, contribuindo para a miséria de muitas famílias. Querem lá elas saber do bem dos empregados? Querem é os lucros. A nossa cultura actual assenta em valores errados.
Nas últimas décadas, mormente a partir da Segunda Guerra mundial, com uma industrialização em progresso e estabilizada e um desenvolvimento apreciável (entre nós foi depois do 25 de Abril), estabeleceu-se por toda a Europa uma cultura de procura desenfreada do lucro, para usufruto meramente egoísta, não se olhando a meios para atingir os fins. Acumular cada vez mais dinheiro, de forma célere e fácil, tornou-se o objectivo e a meta do cidadão europeu, muitas vezes, numa sofreguidão devoradora. O dinheiro tornou-se o centro e o senhor do mundo, obrigando ao sacrifício de tudo, até do mais sagrado. Atrás do culto do dinheiro, vierem mais dois comparsas: o consumo e o bem-estar. Ter dinheiro, consumir e gozar a vida – em sentido hedonista -, eleitos os valores «della vida bella», passaram a andar de mãos dadas. Como não podia deixar de ser, «o culto do efémero e do imediato, a exaltação do egoísmo, a prevalência das aparências, a desvalorização da criação e da partilha de responsabilidades – tudo isso conduziu à ganância, ao esgotamento dos recursos disponíveis e à afectação dos meios que deveriam caber às gerações futuras», nas palavras do Gabinete de Estudos Pastorais da Conferência Episcopal Portuguesa.
Não basta só o lamento e o esperar uma retoma que nos encaminhe de novo para o abismo. É preciso repensar tudo, redefinindo valores, prioridades e o ideal de vida por que estamos obcecados. Temos de construir uma nova cultura mais desmaterializada, onde impere a responsabilidade, a justiça e a solidariedade entre povos e pessoas, relativizando-se o vil dinheiro e colocando-se tudo ao serviço da dignidade da pessoa humana. Está na hora de desconstruir um conceito errado de vida e de organização social. Venha a mudança.