20.11.09
Estamos em pleno mês de Novembro. Popularmente, é denominado o «mês das almas». Um mês para todas as famílias recordarem vivamente e fortalecerem a sua comunhão com os seus familiares defuntos, pela oração. No dia um de Novembro, a Igreja uniu-se e alegrou-se com os seus filhos mais ilustres, todo os santos do céu e da terra. No dia dois, todos os cristãos foram convidados a oferecer o sacrifício de Cristo por todos os fiéis defuntos, dia esse que se prolonga por todo o mês, em todas as paróquias.
O mês de Novembro não é um mês para lamentos e tristezas, embora alguma emoção e saudade seja legítima, mas é um mês de alegria e esperança, de festa e profunda comunhão com «aqueles que partiram à nossa frente» e que um dia reencontraremos em Deus.
Duas ideias estão presentes e enformam todo o mês de Novembro: a comunhão dos santos e o purgatório. Pela profunda solidariedade que existe entre todos os membros da Igreja em Cristo, os nossos actos de piedade e oração feitos com amor auxiliam a purificação dos nossos irmãos que se encontram no momento do purgatório, para poderem aceder à visão de Deus, entenda-se, para poderem mergulhar no imenso oceano do amor de Deus e comungar totalmente a vida de Deus pela eternidade. Mas afinal, o que é o purgatório e o que é que lá se passa? O Catecismo da Igreja Católica afirma: «O purgatório é o estado dos que morrem na amizade de Deus, mas, embora seguros da sua salvação eterna, precisam ainda de purificação para entrar na alegria de Deus». As pinturas que vemos em muitos dos nossos altares e alminhas das encruzidalhas não deixam de nos colocar muitas perguntas e suscitar algumas apreensões.
Em tempos, pregou-se - desculpem alguns exageros da Igreja - que era um lugar de sofrimento e tormentos, onde um fogo devorador fustigava, durante algum tempo, as almas por aquilo que não tinham feito bem…De que estamos a falar? É por demais evidente que a visão do purgatório que a velha praxis catequética nos ensinava é insustentável. A divisão do destino final do homem em «três andares» (céu, purgatório e inferno) sempre gerou um mar de perplexidades e, inclusive, contribuiu para o anedotário colectivo.
Num destes dias, tive uma conversa amena com um jovem interessado por estas realidades, a quem ficticiamente vou chamar João. A nossa conversa foi mais ou menos assim:
- Ó Senhor Padre, confesso que o purgatório me mete alguma confusão…Já ouvi de tudo acerca dele…
- Olha, João, essa confusão deve andar na cabeça de muita gente, porque eu também já ouvi muita coisa errada sobre o purgatório. Convém saberes que a igreja foi conhecendo aos poucos a Palavra de Deus contida na Bíblia, a sua interpretação e compreensão hoje é melhor, e que muitas verdades da Igreja vão amadurecendo com os tempos. Cada época tem a sua forma de entender e dizer as coisas, e como os conhecimentos evoluem, hoje entendemos de uma maneira diferente e corrigimos alguns exageros de outros tempos. Foi uma forma de dizer às pessoas que se deve viver responsavelmente e com juízo e que tudo vai ter uma retribuição, o bem e o mal.
- Então o que é o purgatório?
- Olha, antes de mais, é um momento e não um lugar. Após a morte, por força de algum pecado e imperfeição que levamos em nós, Deus submete-nos a um momento de purificação, que não é só limpar-nos do pecado, mas também capacitar-nos para O amarmos como Ele nos ama. Portanto, o purgatório é um momento de graça que Deus, no seu amor, concede aos seus filhos para que possam estar depois em comunhão total com Ele no Céu.
- Mas vai ser um momento de sofrimento e de tormentos…
- Lá estamos a chegar aos exageros, João. De certeza que já ouviste que há lá caldeiras a arder onde as almas vão ser castigadas, um fogo abrasador que atormentará as almas e por aí fora. Olha e não digo mais nada porque até fico chocado com todo esse discurso. Nunca sentiste na morte de um amigo uma grande dor no coração porque ainda poderias ter sido mais amigo dele? Vai ser o sofrimento que vamos ter no purgatório. Quando contemplarmos a grandeza e a beleza do amor de Deus e o quanto Ele nos ama e percebermos o quanto não correspondemos a esse amor na vida, por causa da mediocridade e mesquinhez do nosso amor, sentiremos uma grande dor no coração. Podíamos ter sido muito melhores do que aquilo que fomos, e tudo por culpa nossa. O sofrimento será pelo facto de não nos vermos em comunhão total de vida e de amor com Deus…
- Realmente assim faz mais sentido, Senhor padre. Se Deus realmente é tão bom, como é que poderia ter feito um purgatório tão horrível? E que dizer das imagens do purgatório que existem nas alminhas e nas Igrejas, com todo aquele cenário sofredor?
- Olha, fazem parte de um tempo. Mas tens a obrigação de olhar para elas com outros olhos. O fogo que lá vês é o próprio Jesus Cristo e o amor de Deus que nos abrasará. Procura viver de maneira responsável, amando a Deus e o teu próximo. Deus será sempre bom connosco, mas também não poderá deixar de ser justo. Na vida não vale tudo. Vivendo santamente estarás no bom caminho.
O Papa Bento XVI, na sua Encíclica «Salvos pela Esperança», descreve isto de forma magistral: «Alguns teólogos recentes são de parecer que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador. O encontro com Ele é o acto decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa «como pelo fogo». Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus. Deste modo, torna-se evidente também a compenetração entre justiça e graça: o nosso modo de viver não é irrelevante, mas a nossa sujeira não nos mancha para sempre, se ao menos continuámos inclinados para Cristo, para a verdade e para o amor».
Entretanto, e como muito bem nos ensina a Igreja, não nos esqueçamos que «os fiéis ainda peregrinos na terra podem ajudar as almas do purgatório oferecendo as suas orações de sufrágio, em particular o Sacrifício eucarístico, mas também esmolas, indulgências e obras de penitência».