05.02.13
Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2013, O Papa Bento XVI reafirma algumas verdades, que a Igreja considera urgentes, fundamentais e inegociáveis, para a construção de uma verdadeira paz, que «não é um sonho, nem é uma utopia», mas pode ser uma realidade, unindo-se o dom de Deus e a obra humana: é necessária a eliminação das desigualdades entre ricos e pobres, sempre geradoras de conflitos incuráveis; a supressão da mentalidade egoísta e individualista que tem alimentado um capitalismo financeiro desregrado; o abatimento do terrorismo e dos fundamentalismos; o respeito pela integridade do homem, com todas as suas dimensões; o reconhecimento de que, em Deus, somos todos uma única família humana; a promoção do valor da vida na sua integridade, desde a conceção até ao seu fim natural; o respeito pela estrutura natural do matrimónio, enquanto união entre um homem e uma mulher; a fomentação da liberdade religiosa; a instauração de um novo modelo de desenvolvimento e de economia centrado no verdadeiro progresso dos povos e nas reais necessidades das pessoas; priorizar e construir uma pedagogia e uma cultura da paz.
Particular atenção merece a sua afirmação sobre a função social do Estado: «O obreiro da paz deve ter presente também que as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia insinuam, numa percentagem cada vez maior da opinião pública, a convicção de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais. Ora, há que considerar que estes direitos e deveres são fundamentais para a plena realização de outros, a começar pelos direitos civis e políticos». Nas palavras de D. Januário Torgal Ferreira, até parece que o Papa andou por Portugal estes dias.
Já se percebeu que, mais tarde ou mais cedo, por toda a Europa, o Estado social vai estar no centro do debate político e social, precisamente na região do mundo onde ele teve mais implementação e impacto. Em Portugal não se foge à regra, e esquerda e direita já começaram a escavar as trincheiras e a esgrimir argumentos, uns a favor da sua manutenção sem apontar defeitos (miopia da esquerda) e outros a favor da sua refundação (palavra que pelos vistos não agrada a ninguém), sem dar muita importância às suas virtudes, considerando que o Estado social é um luxo de países ricos ou de estados capitalizados (excesso da direita). As duas partes têm um pouco de razão: o Estado tem uma função social imprescindível, mas também é verdade que se têm cometido excessos e é necessária uma nova configuração do Estado social, e que, por isso, é urgente renovar a função social do Estado, redefinir a sua forma e o seu conteúdo. Bastava reconhecer isto e não era necessária mais uma batatada entre esquerda e direita que, a verdade seja dita, nos vai dar umas boas doses de boa disposição. Custa-me a entender e a discutir as questões de forma maneta, como se ser de esquerda ou de direita se tenha que ser obrigatoriamente a favor de umas coisas e contra outras, sem mais nem menos, sem se buscar um equilíbrio. Deus fez-nos com duas mãos, não para uma esmagar a outra, mas para ambas se unirem na construção de uma obra comum. Já lá vai o tempo em que esquerda e direita tinham projetos e visões da sociedade díspares e bem vincadas, o que não acontece atualmente.
Do ponto de vista da Igreja Católica – leia-se a doutrina social da Igreja – o Estado existe para criar o bem comum de uma sociedade. Esta confia ao Estado o poder de criar e organizar as condições básicas para o desenvolvimento e realização da pessoa humana e das instituições da sociedade. Assim diz o número 74 da constituição pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II: «A comunidade política existe, portanto, em vista do bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição». O Estado não existe por si mesmo e para si mesmo, mas existe para organizar, regular, controlar e proteger a sociedade, apoiar e incentivar o progresso e o desenvolvimento onde é necessário e colmatar ou suavizar os desequilíbrios e as lacunas que a sociedade cria. Obrigatoriamente, todo o estado tem uma função social e não pode deixar de ser social. Se prescindir da sua função social, passa a ser um poder sem sentido e até certo ponto inútil, um poder apenas formal. O Estado tem uma função social inequívoca. Neste campo a esquerda tem razão, embora a direita também não o negue explicitamente.
Mas até onde deve ir a função social do Estado? Quais são as suas prioridades e onde deve estar e não estar? De que bens e serviços não pode prescindir? Esta é a questão decisiva e premente e é o debate que urge fazer. Até agora, as soluções apresentadas são pouco claras. A esquerda barafusta muito, mas não aponta caminhos. Tem razão a direita quando diz que o atual estado social é insuportável (os dados e os números são inquestionáveis), pugnando pela sua reforma, para ser verdadeiramente estado social, mais eficaz e mais eficiente. O estado social, nos últimos anos, cresceu desordenadamente e adotou erradamente um rosto assistencialista, que muito contribui para a sua decadência, face ao real crescimento económico dos países. O Papa João Paulo II, na sua Encíclica Centesimus Annum, no número 48, alertava para este problema: «Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o «Estado do bem-estar». Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como «Estado assistencial». As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas».
O problema está nos argumentos que a direita usa: tem de se reformar o estado social porque há escassez de recursos. Como é que se pode entender este argumento se todos os dias o Estado não pára de capitalizar bancos e de disponibilizar dinheiro para os negócios que muito bem entende, alguns ruinosos para o Estado? Com razão, pesam sobre o governo fortes suspeitas de que o estado social não é uma prioridade, o que é inaceitável, e que há interesse em desmantelar o estado social, com grande insensibilidade tecnocrata, para se favorecer os interesses privados, colocando-se gravemente em causa o acesso a bens essenciais das pessoas mais frágeis e mais pobres da sociedade. Se é este o caminho que o governo quer seguir, é intolerável.
Começa a ser consensual que é necessária uma reforma do estado social, mas que seja uma reforma com equilíbrio e sensatez. O Estado jamais pode deixar de actuar de acordo com o fim para o qual foi criado, como o afirma a Igreja: «O indivíduo humano, a família, os corpos intermédios não são capazes, por si próprios, de chegar ao seu pleno desenvolvimento; daí serem necessárias as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os bens necessários – materiais, culturais, morais, espirituais – para levarem uma vida verdadeiramente humana».