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minhas notas

07.11.11

 

Ainda é noite. De rompante, dá-se um pulo da cama, sentido-se perpassar pela mente o pensamento de porque é que noutros dias é tão difícil fazê-lo. Deixa-se a resposta para outro dia. Vem-se à janela e facilmente se perscrutam o sono profundo e o silêncio denso que tomam conta do mundo, que, não demorará muito, serão atraiçoados. Uma lufada de ar matinal saúda-nos e faz-nos sentir o primeiro arrepio. Está consumado o despertar.

Tomado pela urgência e pela excitação, o caçador, num estalar de dedos, está pronto. Quando se tem motivação, nada custa, tudo é rápido. Um após outro, começam a chegar todos ao ponto de encontro, normalmente um café, alguns já refeitos de uma noite mal dormida, outros ainda a bocejar, com ramelas nos olhos humedecidos, ainda atordoados por um sono severamente interrompido. A alvorada, timidamente, vai-se aproximando, empurrando a escuridão da noite. 

Os cães estão impacientes. Enfileirados junto à rede das barracas das carrinhas e dos reboques, vão soltando gemidos e ladros vagos e secos, com os olhos fixos na porta do café. Alguns mais ranhosos põem um pouco de ordem na matilha e marcam a sua posição. Sem eles, a caça seria impossível. Já lá vai o tempo em que se dava um pontapé numa carqueja ou numa urze e se levantava um coelho ou uma lebre. Agora, sem meia dúzia de cães bons, dificilmente se dá ao gatilho.

Após a primeira reunião geral, por norma curta, para a definição do lugar da caça, os caçadores lançam-se, frenéticos, à estrada. A esperança que os domina é a de terem um dia bem passado, desligado das agruras e martírios do dia-a-dia, adornado com surpresa, aventura, convívio, adrenalina, diversão e partilha.

Chegados aos montes, não há tempo a perder, já o sol vai estendendo os seus raios pelo horizonte e começam-se a ver aos poucos pequenos fios de vapor da humidade que se despede do chão da terra. Colocam-se os últimos apetrechos, labor mais demorado para os que vão cortar mato. Os cães saúdam-se em grande algazarra e frenesim. Com alguma meticulosidade, investigam-se os tourais e os feitios dos coelhos. Alguém atira: «estão frescos». Paulatinamente, cada caçador dirige-se para um posto, uma encruzilhada ou um penedo bordado com líquenes secos. Começa a caça.

Subitamente, faz-se silêncio. Às primeiras ordens, submissos, os cães irrompem no matagal acidentado, composto de tojos, urzes, carquejas e fetos definhados. Guiados pelos donos e pelo vício, batem todos os cantos. Um ou outro está mais agitado. Há rasto fresco. Não demora muito, surgem os primeiros latidos dos cães. Levantou-se um coelho. Os caçadores aprumam-se e colocam a arma em riste. Ouve-se um tiro. Não caiu. O mesmo caçador avisa: «vai aí para cima», outro informa: «vai acolá, já passou ali». O coelho, esquivo e veloz, faz pela vida, percorrendo os trilhos escondidos no mato. Após uns instantes, ouve-se um tiro e mais um. O coelho tombou. Orgulhosamente, o caçador exibe-o e coloca-o à cinta. Dois ou três cães chegam um pouco depois, no rasto do coelho. Alguns dispersaram-se. Outros chegam mais tarde. Compreende-se. O tempo vai seco, o que não favorece a perseguição aos coelhos. Ainda assim, dever cumprido.

Parte-se para outro. Depois do primeiro alvoroço, retoma-se o fio à meada. Os cães já desapareceram de novo no matagal. Após alguma acalmia, a meio de um giestal, um cão assinala outro coelho, parecendo que alguém lhe pisou uma pata. Os outros acorrem. Gera-se o tumulto. Os caçadores ficam hirtos, com as armas a meia haste, um ou outro usando mímica para se posicionarem melhor. Mas, lentamente, o ruído começa a diminuir. Os cães andam meios perdidos. Ninguém viu o coelho. Já todos sabiam a sentença: o coelho entocou-se nuns penedos, que mal se viam no meio do matagal. Contudo, o cão que o viu continuava de nariz no chão, batendo todos os cantinhos, correndo atrás e à frente, e mesmo após a insistência do dono para que retomasse a matilha, ainda teimava em lançar mais uma espreitadela e mais uma farejada, e foi com alguma frustração que abandonou o giestal.

O que se passou com aquele cão? Aquele cão viu o coelho e os outros não o viram. Por isso, foi o último a sair dali. Ele fez uma experiência que mais nenhum cão fez. Do alto da penedia onde me encontrava, enquanto contemplava aquele cão teimoso, dei por mim a pensar na trama da vida. «A vida é assim». Tudo na vida é um pouco assim. Nos negócios, nos amores, na amizade, nas opções fundamentais da vida. Uns descobrem e teimam, outros são espectadores e desistem. O quanto nos faz falta «ver». Há pessoas audazes, ousadas, determinadas, resolutas, visionárias e optimistas, que se lançam à vida e a agarram com toda a força e vivem intensamente. Procuram-lhe as surpresas e nunca mais a largam. Outras pessoas, limitam-se a ir atrás delas. Usando a imagem da caça, há pessoas que procuram o coelho com tenacidade e, quando o encontram, nunca mais o largam. Outras, vão atrás do «latido» de quem o descobriu, mas rápido desistem porque não o viram, nem se importaram em vê-lo. Ao ouvirem outro latido, correm para lá, assarapantadas. O quanto lhes faz falta «ver».

Há cristãos que não se limitam a ouvir falar de Deus, ou se quisermos, de Jesus Cristo. Vão à procura dele. Rezam, estudam, lêem, vivem a vida da Igreja, aplicam-se em cursos de formação, perdem horas diante do Santíssimo, dedicam-se aos outros e às causas sociais sem exibicionismo, buscam direcção espiritual, perfilham problemas e dificuldades. De tal maneira o vêem, que já dificilmente o largam. Como a experiência que fazem de Deus é intensa e profunda, já não vivem sem Ele, porque estão a vê-lo. Os santos são assim. É por isso que chamam atenção e marcam as pessoas com quem vivem e o tempo em que vivem. Outros cristãos, satisfazem-se com o ruído dos outros e com aquilo que os outros lhes dizem, deixando-se ir atrás deles, a boiar na rama da vida, papagaios de papel sujeitos aos ventos das modas e dos apetites. Acreditam porque os outros acreditam, sem saberem bem em quê, dão meia dúzia de escapadelas à catequese e à Igreja, esvaziam os sacramentos com diversão, contentam-se com os mínimos, não entram no mistério. Acaba tudo por ser feito a contragosto e não demorará muito, começam a lançar-se no mar das desculpas para tudo o que não fazem e demitem-se ou até abandonam. É este o problema de muitos cristãos, ou que se dizem cristãos. Faz-lhes falta «ver». Mas também não querem ver. Se se empenhassem em aprofundar a sua fé e em conhecer e descobrir Jesus Cristo, na Igreja, como seriam diferentes. Assim, são cristãos por arrastamento, vão atrás dos outros, acreditam no que os outros acreditam e porque os outros acreditam, vão onde os outros vão, mas tudo é vivido muito superficialmente, sem entrega, sem convicção, sem coração, sem alma. Acabam por ser cristãos desinteressantes, amorfos, medianos, sensaborões, estiolados.

O dia chega ao fim, começa o sol a recolher o seu calor e a sua luz e a esconder-se atrás dos montes. Caçadores e cães estão exauridos. Alguns coelhos tiveram o seu último dia de vida. Outro dia há mais. Agradeço a Deus por vir da caça com mais lucidez e pedindo-lhe que me mostre o seu «rosto», porque se não o «vir» fico perdido.

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