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minhas notas

17.09.15

Os caminhos que vão dar a Santiago de Compostela estão outra vez na moda e não param de ter peregrinos estoicos e obstinados todos os dias, de diferentes identidades e organizações e com as mais variadas motivações. Convém percebermos um pouco como é que estes míticos e afamados caminhos nasceram e com que espírito os devemos percorrer.

Em primeiro lugar, no respeito pela verdade histórica, vale a pena lembrar que dificilmente o Apóstolo S. Tiago terá estado em Compostela ou terá andado a evangelizar a Hispânia. Não há nenhum documento da Igreja que o comprove, nem qualquer outro documento histórico fidedigno que o ateste. S. Tiago terá ficado por Jerusalém e arredores, sendo o primeiro apóstolo a sofrer o martírio em nome da fé cristã, como tão bem a liturgia nos ensina. A sua viagem pela Hispânia foi uma «invenção».

S. Jerónimo (séculos IV e V) deixou o rastilho: expressou nos seus escritos que a Hispânia foi evangelizada por um apóstolo. Se assim foi, ao longo dos tempos, foi ganhando força a convicção de que o túmulo desse apóstolo estaria algures num lugar desconhecido da Hispânia. Mas como criar o «facto»? Recorreu-se ao estratagema habitual: criou-se e divulgou-se uma lenda ou um fenómeno espantoso. No século IX (820-30), um eremita chamado Paio contou que, numa certa noite, viu umas estrelas ou umas luminárias a arder sobre um bosque (Compostela). Outros fiéis confirmaram que também viram o mesmo. O então Bispo da Galiza, Teodomiro, deu crédito ao testemunho do eremita e dos fiéis e resolveu ele mesmo inteirar-se do assunto e desvendar o mistério. Dirigiu-se à zona densa do bosque, onde descobriu um pequeno oratório. Não teve a menor dúvida que se tratava do túmulo do Apóstolo S. Tiago. Mandou construir no local uma Igreja (mais tarde até o bispo ali estabeleceu a sua residência), que foi dotada de privilégios régios pelo rei das Astúrias, região a que a Galiza estava anexada, Afonso II, também ele convencido que se tratava de um facto com marcas de autenticidade. Assim nascia o culto hispânico de S. Tiago, centro de uma das peregrinações mais concorridas da história do Cristianismo. Uma rede de vias e caminhos, tanto terrestre como marítima, foi construída para que peregrinos de todo o mundo, cada vez em maior número, sobretudo da França, país mais povoado da época, pudessem vir tocar as relíquias do apóstolo ou pedir ou agradecer alguma graça ao apóstolo.  

Sabiamente instrumentalizado por bispos e reis, o culto jacobeu (culto de santiago) teve duas grandes finalidades: fortalecer a fé dos cristãos hispânicos, «enraizada» no ensino e «abençoada» por um dos apóstolos mais importantes de Jesus, no combate contra a investida do islão pela Península Ibérica, investida que teve o seu início em 711, e retirar do isolamento e alfabetizar a região hispânica, então pouco civilizada, que tinha grandes territórios semisselvagens, incultos, rudes, ecléticos, cheios de contradições e de desordem cultural e social. Para o poder político, o culto a S. Tiago foi uma bênção vinda do céu, que, como motor agregador e unificador, serviu para se reconstruir a Hispânia e se criar unidade e consistência social, cultural e religiosa. Grande intervenção neste campo teve o monaquismo cluniacense (Ordem de Cluny, mais tarde também a Ordem de Cister), nascido no século X, desde cedo detentor de grande respeito e prestígio, que gozava da simpatia dos reis hispânicos (Astúrias e Leão), estabelecendo-se em zonas nevrálgicas dos caminhos, assim como da Hispânia.

 Hoje, como sempre, os caminhos de S. Tiago são uma escola de vida e uma ação que possibilita o encontro com a vida, consigo mesmo, com os outros e com Deus. Segundo os peregrinos, são muitas as motivações, umas mais nobres do que outras, que os levam a calcorrear estes caminhos históricos e míticos: libertação do peso do quotidiano, testar os limites, solidariedade e atenção aos outros, aprender que se pode viver com sobriedade, contemplação e encontro com Deus através da natureza, desporto e aventura, busca de Deus e aprofundamento da fé. Se esta última é a motivação que nos leva a Santiago de Compostela, tão importante como o ir até lá, é depois a viagem de regresso, porque seremos pessoas diferentes, mais humanas e mais maduras, cristãos mais autênticos e comprometidos, seres humanos mais polidos e solidários. Oxalá muitos peregrinos possam experimentar esta graça de Deus.

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