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minhas notas

27.05.13

A celebração do 25 de Abril começa a ser confrangedora em Portugal. Começa a ganhar forma a ideia de que desune mais do que une e não passa de um dia para troca de recados e de galhardetes entre forças políticas ou fações da sociedade, manifestando que a história não é consensual e que há muitas maneiras de contar e ler a história. A este propósito, recordo um bom professor de história, que tive no secundário, que afirmava que ainda está muito por contar sobre o 25 de Abril. Então militar, na sua opinião, foi o mal-estar no interior das forças armadas que provocou a revolução, porque existiam graves injustiças e desequilíbrios dentro das forças militares, no campo das regalias, do percurso das carreiras e dos privilégios, injustiças a que o poder instituído não estava a dar a devida resposta e atenção, despoletando, assim, a reação dos militares com a revolução. A narrativa da liberdade foi uma forma romanceada de se esconder as verdadeiras razões da revolução de Abril, nas palavras do professor. Verdade ou mentira? Não sei. Não me banho nesta praia. O que sabemos é que, de facto, a história não é consensual e tem muitas leituras. Nem todo o historiador separa bem a verdade do que quer que seja verdade e há muito historiador que escreve com preconceitos, inquinando, assim, a sua redação histórica.   

Seja como for, e querelas históricas à parte, é inquestionável o valor e o significado da revolução do 25 de Abril. Operou uma mudança necessária e premente e institui no país um conjunto de valores democráticos, que há muito fervilhavam na consciência da maioria da população portuguesa. Nenhum regime ou poder político tem direito a legitimar uma ditadura sobre um povo, porque a finalidade da ação política é construir o bem comum desse povo, numa atmosfera de liberdade e de respeito por esse povo, em todas as suas dimensões. O poder político não é dono e senhor do povo, mas é seu servo, mandatado pelo próprio povo, para organizar e construir o conjunto de condições para que cada cidadão contribua para o bem comum e procure o seu bem individual. Se é certo que o regime de Salazar, nos seus alvores, contribuiu para a consolidação da paz e da estabilidade social, num país que ainda vivia em febre republicana, com o tempo estendeu abusivamente e ilegitimamente os seus tentáculos inquisitórios e totalitários a todos os campos da sociedade portuguesa e da vida privada das pessoas, promovendo o medo, a perseguição, a tortura, o amordaçamento, a submissão forçada, a denúncia, o policiamento doentio sobre ideias, valores e ações, algo que jamais um povo deve aceitar da conduta do poder político.

Ouve algum vento católico que tenha inspirado a revolução? Houve. E foi decisivo. Eu sei que a ação e o procedimento da Igreja Católica durante o Estado Novo não é consensual. Há quem acuse a Igreja de colagem e colaboracionismo com o velho regime e de falta de coragem e de audácia para denunciar os seus abusos e de enfrentar, com inspiração profética, os seus atropelos e apontar, com firmeza, caminhos mais consentâneos com o respeito pelo povo e pela dignidade humana. Talvez a Igreja tenha passado ao lado do pobre caído na berma da estrada, mas também há exemplos de enfrentamento ao velho regime, como é o caso do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, entre outros. Dizer-se que a Igreja Católica era, sem mais nem menos, como já ouvi, aliada da ditadura, não é verdade. Poderá não ter feito tudo que estava ao seu alcance, com excessiva tibieza e timidez, mas, na sua realidade total, não era uma amiga íntima do velho regime.

Se a boca se cala, o Espírito Santo não se cala, e acreditamos que o Espírito Santo conduz a Igreja. No dia 11 de Abril de 1963, o «Papa da Bondade», João XXIII, publicava e oferecia à Igreja a carta encíclica Pacem in Terris (Paz na terra), com o subtítulo «A paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade». Foi e é um documento marcante da Igreja Católica, que apontou novos caminhos e impulsionou mudanças no mundo, nomeadamente na Europa, ainda a debater-se com o aguilhão dos regimes opressores e totalitários. Foi isto mesmo que testemunhou no programa da Igreja Católica, na Rádio Antena 1, José Rodrigues, atual Vice-Presidente da Liga Operária Católica – Movimento de Trabalhadores Cristãos, na altura, membro ativo da JOC (Juventude Operária Católica). A encíclica do Papa João XXIII foi uma nova aragem que veio sobressaltar consciências e mentalidades. Apontou a necessidade de uma nova construção social e um conjunto de valores e princípios, que as ditaduras europeias não estavam a respeitar, como a falta de liberdade, liberdade de pensamento, liberdade de expressão, participação cívica, falta de liberdade para as associações e organizações, liberdade para associação, o direito dos trabalhadores a terem uma vida digna, uma vida com condições, uma vida de liberdade. Este documento da Igreja católica despertou e uniu, sobretudo os jovens daquela tempo e gerações seguintes, na busca de um novo rumo para as sociedades europeias, despertou para a urgência de uma mudança profunda nas sociedades, em que se devia «olhar o homem como pessoa, com direito a ter uma vida digna, a ter direito ao trabalho, a ter direito à liberdade».

A encíclica não teve o intuito de provocar revoluções políticas e socias. Os seus horizontes estão para além disso. Mas inspirou-as. A seu modo, com refere José Rodrigues, foi a base para a revolução do 25 de Abril. 

07.05.13

Os cristãos, no fim da vida terrena, celebram as exéquias (atos finais, seguir e acompanhar alguém até ao fim), ou mais conhecido entre nós, o funeral, o enterro: conjunto de ritos e orações para se suplicar a Deus a purificação dos pecados e de todo o mal e a entrada na plenitude da vida de um batizado em Cristo e membro da Igreja, ritos que devem ser celebrados com dignidade e simplicidade. O momento mais importante das exéquias é a celebração da Eucaristia, memorial da Páscoa de Jesus Cristo, sacrifício oferecido para a remissão dos pecados e celebração da passagem da morte para a vida em Deus do falecido, participando no mistério pascal de Jesus Cristo. Aliás, a Igreja lembra, em primeiro lugar, isso mesmo: todo o funeral é uma celebração do mistério pascal de Jesus Cristo. É uma atualização da sua entrega pela humanidade e da sua morte e da sua vitória sobre a morte, passando para Deus Pai, onde vive eternamente. No fim da sua vida, todo o cristão, unido a Cristo, atinge e participa na plenitude deste mistério, que já começou a ser vivido no dia do Batismo.

 

Nestas horas dolorosas da vida, todos os cristãos são convidados a reunirem-se para, solidariamente, agradecerem a Deus os dons com que cumulou a vida do falecido e tudo o que de bom dele receberam,  oferecerem uma última prece redentora por ele e dar consolação e fortalecimento à esperança da família enlutada. Um falecido não é apenas um familiar, um amigo ou um habitante duma determinada terra. É um membro de uma comunidade cristã que deixa o mundo e parte para Deus. Toda a comunidade cristã, de que ele fazia parte, dentro do possível, em profunda comunhão com ele e com a família, deve marcar presença, porque a comunidade também está de luto e perdeu um dos seus membros, que se alimentou dela e viveu para ela. Há uma íntima união e fraternidade entre todos os cristãos, que deve ser sempre celebrada, vivida, reforçada e manifestada. Assim o recomenda a Igreja.

 

Mediante este entendimento e estes pressupostos, e escusado será dizer que não foco nenhum funeral em concreto, mas a sua globalidade, já reparámos que há alguns aspetos que é preciso melhorar na vivência dos nossos funerais. Infelizmente, verifico que o verdadeiro espírito cristão e comunitário anda ausente de muitos funerais. Em primeiro lugar, lembremos que a razão primeira e última que nos leva a participar ou que nos deve levar a participar num funeral é a partida de um cristão que fazia parte da comunidade, seja ele quem for, e não apenas a amizade, a ligação à família ou a aceitação e estatuto social da pessoa falecida, que são os critérios mais notados na conduta das pessoas. Noto que a vivência comunitária dos funerais ainda tem muito para crescer, talvez porque a dimensão comunitária anda muito ausente da vida de muitos cristãos e não se entende a fé cristã como pertença a uma comunidade, como de facto é.  

 Em segundo lugar, se é certo que há legitimidade para se homenagear quem partiu, os funerais não são meras homenagens ou despedidas, cumpridas com formalismo, nem muito menos são momentos para elegias e panegíricos de todo o tipo, dirigidos quer ao falecido ou à sua família, que obscureçam a oração e o centralismo de Jesus Cristo. Para isso, não se ia à Igreja. São momentos de oração e de encontro com Jesus Cristo, razão de ser de todo o ato. São, primeiro que tudo, momentos de celebração e de testemunho da fé cristã. É inaceitável a indiferença que muitos cristãos (ou ditos cristãos) dão à liturgia cristã (muitos querem ver passar a missa como gato sobre brasas), como também é inaceitável o acrescento de elementos de cariz meramente sentimentalista, estranhos ao espírito da liturgia das exéquias. Isto não quer dizer que não existam traços humanos e sociais que mereçam destaque. Há um momento para isso, que deve ser realizado com sobriedade e sem vanglória.

Em terceiro lugar, seria bom evitar o exibicionismo nos funerais. A Igreja assim o recomenda: «Na celebração das Exéquias, além da distinção baseada no ministério litúrgico e na Ordem sacra, e excetuando as honras devidas às autoridades civis, segundo as leis litúrgicas, não se faça qualquer aceção de pessoas particulares ou de condições sociais, quer nas cerimónias quer no aparato exterior». É inaceitável, e com grave dano para o testemunho cristão, que se aproveitem os funerais para ser mostrar o poder económico e social ou para se marcar a diferença pela diferença, com orgulho. Diante de Deus, todos os homens são iguais em dignidade e valor. Convinha que esta profunda igualdade entre todos os homens fosse notória na hora dos funerais. Seria bom evitar algum aparato desnecessário e despropositado, assim como seria bom e correto não se fazer aceção de pessoas, em que se veem funerais com multidões e outros que mal têm pessoas para se cumprirem as exéquias com dignidade e primor. E não é só devido à disponibilidade, porque as pessoas para o que querem arranjam disponilidade. Então, afinal, o que conta é o dinheiro e a importância que a pessoa falecida ou família têm e a utilidade que têm ou tiveram para nós? A sociedade, que é tão sensível à desigualdade entre ricos e pobres ou a outra qualquer categoria que diferencia as pessoas, deixa que isso mesmo seja manifesto na hora dos funerais. É justo e correto que assim seja? É correto que cristãos assim o façam? Um cristão rege-se por critérios e valores evangélicos e cristãos e não por critérios e valores mundanos.

 

Para finalizar, sublinho mais dois aspetos que me desagradam: não tem sentido os «funerais julgamento», que se fazem a certas pessoas. Quando questiono a pouca participação das pessoas, por vezes, dizem-me que talvez se deva ao pouco merecimento da pessoa. Quem nos constituiu juízes dos outros? Será que nós cristãos não devemos ter um último gesto de solidariedade e amabilidade para com aquele cristão? Não é isso que nos fica mesmo bem? Ser cristão não é testemunhar a gratuidade e o amor para lá da justiça? Tenho todo o respeito pela dor das pessoas e todas as pessoas têm direito a expressar a sua dor e cada pessoa tem a sua forma de o fazer. Mas há prantos que se revestem de um alarido e aparato excessivo, porque até acredito que, em particular, muitas pessoas não choram como choram diante dos outros. Carpir para ver e ouvir não é lá muito bonito. Por vezes, tem mais força o silêncio e a serenidade. 

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